Em minha última coluna neste espaço, escrevi sobre o culto ao empreendedorismo e o fetiche que se criou em torno do tema. Recebi algumas mensagens de jovens leitores relatando como, após lerem o texto, conseguiram tangibilizar algumas percepções que tinham sobre o assunto de forma mais concreta e articulada. As dúvidas que pairam na cabeça de jovens profissionais sobre o tema “empreendedorismo” giram em torno de uma questão relevante: se empreender é uma possibilidade real e acessível a todos, por que eu ainda não consegui abrir meu negócio?
A resposta errada para essa pergunta, que muitas vezes vira uma armadilha nas autoexplicações criadas em nossa cabeça, coloca toda a responsabilidade no indivíduo. As questões macroestruturais, como acesso a capital, condições regulatórias favoráveis, altas barreiras de entrada em alguns mercados, rede de contatos (parceiros, mentores, colaboradores) e capacitação, são colocadas em segundo plano.
Quando culpamos indivíduos por não conseguir empreender, assumimos que o principal fator de sucesso para a criação de um novo negócio é a mentalidade de quem empreende. Com os pensamentos e atitudes certos, todos os desafios serão superados, não importando tamanho e natureza. Tomando esta ideia central como base, há toda uma oferta de soluções disponíveis, que prometem desenvolver todas as habilidades e competências necessárias para tornar-se um empreendedor de sucesso.
No entanto, a maneira certa de abordar a questão posta no início é avaliar as condições do ecossistema empreendedor no Brasil, especificamente no setor e segmento de atuação do negócio. Fazer o exercício de coletar dados sobre o mercado, conversar com pequenos e médios empreendedores que atuam na área e se aprofundar nos desafios e oportunidades reais trará mais consistência aos planos de quem considera empreender como uma opção de carreira.
“Postura de dono”
Mesmo adotando uma postura racional diante do empreendedorismo, as chances de se descobrir empreendedor não são maiores do que as de encontrar outra profissão que tenha mais afinidade com o seu perfil, talentos e aspirações. Deste modo, não há nada de errado em não ter a sua própria empresa. O desafio atual dos profissionais que não são empreendedores é a imposição de que devam ser intraempreendedores, outro termo que vem ganhando notoriedade desde a ascensão do empreendedorismo.
Intraempreendedor é aquele que trabalha para uma organização, mas possui “atitude empreendedora”, que se traduz em explicações como “olhar de dono”, “assumir riscos”, “ chamar para si a responsabilidade”, entre outros. Essas definições não são as mais corretas para o termo, no entanto. O intraempreendedor é o colaborador que se envolve na criação de novos produtos, na ampliação das linhas de atuação da empresa, na revisão de processos e estruturas organizacionais.
São os profissionais com perfil inovador, atuando melhor no desenvolvimento de novos projetos do que na execução de tarefas estabelecidas. No entanto, ser um intraempreendedor não é mais valioso do que ser um gestor, por exemplo. Perfis complementares de colaboradores são igualmente necessários para o bom funcionamento de uma organização privada ou pública.
Oportunismo
O uso mais nocivo (e oportunista) que a palavra intraempreendedor ganhou recentemente é como disfarce para a precarização das relações de trabalho e diminuição dos direitos dos trabalhadores, especialmente os que representam camadas mais vulneráveis (com pouca escolarização e baixos salários). Exemplo clássico é ser funcionário fixo de uma organização contratado como Pessoa Jurídica (PJ), mas manter uma rotina de trabalho aos moldes da CLT (horário de entrada e saída, comparecimento presencial diário no escritório, nenhuma flexibilidade para decidir sobre as horas de trabalho).
Outros exemplos: assumir tarefas que nada têm a ver com o escopo do seu cargo para preencher a ausência de outro colaborador responsável por aquela função; trabalhar semanalmente muitas horas a mais do que o estabelecido em seu contrato de trabalho sem ser remunerado por isso. Muitos colaboradores aceitam essas condições por falta de opção, mas há, também, quem acredite que, para ser um intraempreendedor, é necessário se encaixar nesta configuração de trabalho, o que não é verdade.
Quando aceitamos e propagamos a versão banalizada (mais popular, apelativa e emocional) dos termos empreendedor e intraempreendedor, damos força a organizações e pessoas que fazem mal uso deles e prejudicamos o trabalho sério dos que realmente atuam com responsabilidade, empreendendo e intraempreendendo soluções necessárias para problemas reais da maneira certa, garantindo os direitos dos colaboradores e criando condições para que desenvolvam seu potencial, seja ele qual for.
Ana Machado é mestra em educação pela Universidade Stanford, especialista em psicossociologia da juventude e políticas públicas pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FEPSP) e bacharel em marketing pela Universidade de São Paulo (USP)
Email: anamach@stanford.edu / Instagram: @abouteducation