SABEDORIA DO CANDOMBLÉ

Dora Barreto é negra, mãe de santo, fisioterapeuta e educadora social premiada

Aos 64 anos, ela percebe que enfrenta racismo desde que se entende por gente. Investindo nos estudos, Dora e os irmãos superaram muitas barreiras

Ana Paula Lisboa
postado em 06/12/2020 14:50 / atualizado em 06/12/2020 17:10
Dora Barreto, sacerdotisa e fisioterapeuta -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Dora Barreto, sacerdotisa e fisioterapeuta - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Dora Barreto ou Mãe Dora de Oyá é yalorixá (mãe de santo) do Ilê Axé T'ojú Laba, terreiro de candomblé Ketu localizado em região de chácaras do Jardim ABC, bairro da Cidade Ocidental (GO). Além do caminho religioso, desempenha um papel social por meio de projetos, como o ABC Musical, idealizado por ela para ensinar música a crianças e adolescentes da periferia. Alguns dos participantes chegaram à Escola de Música de Brasília (EMB).

Graças a iniciativas como essa, Dora ganhou o Prêmio Paulo Freire de Educador Social em 2019. “É uma honra danada”, celebra. Ela é, também, diretora-geral do afoxé (conjunto musical) Ogum Pa, o único do DF e que se apresentou em Cuba. Costureira de mão cheia, fundou, há cerca de um ano, com filhas de santo, a marca Fios Ancestrais, voltada a roupas de candomblé e umbanda, mas que também produz máscaras, moda afro e outros itens.

A discriminação racial e religiosa esteve presente ao longo dos 64 anos de vida de Dora. Baiana, ela veio para o Distrito Federal em 1970 e cresceu em Taguatinga. “Desde que me entendi por gente, vejo racismo, velado ou não. As mães dos vizinhos não deixavam os filhos brincarem conosco, diziam que a gente ia virar prostituta”, recorda, sobre a infância. Na época, isso “doía de forma diferente” e ela ficava sem reação, pois nem compreendia o termo.

Na escola, era chamada de “negrinha de cabelo de bombril”. Estava entre as primeiras a serem chamadas para a sala da direção. Dora perdeu a mãe aos 6 anos. Filha de um fiscal de asfalto que passava muito tempo fora de casa, ela e os irmãos arranjaram mecanismos de defesa. “Brincávamos no nosso próprio quintal, inventávamos brinquedos para não ir à rua, nos isolamos.”

Cansados de serem chamados disso ou daquilo, Dora e os irmãos fizeram um pacto para estudar muito e não se tornarem o que diziam que seriam. “Eu sonhava em ser respeitada”, lembra. Todos se formaram e se tornaram bem-sucedidos profissionalmente: além de Dora, que estudou fisioterapia, os outros são duas enfermeiras, uma administradora, um ator e professor universitário, um contador e uma pedagoga.

A dor da discriminação virou motivação para buscar se superar sempre. “A cada pancada, é como se arrancassem um pedaço de nós. O racismo dói e te mata todos os dias de alguma forma. Você tem que renascer todos os dias dentro dessa morte de alguma forma. É o que me dá força para lutar pela minha filha biológica e todos os meus filhos de santo”, conta. “O maior castigo para o racista, que é covarde e frustrado, é, sim, você ser bem-sucedido, andar bem vestido, ser culto, se destacar no que você faz”, diz.

Deixar tudo pela religião

Dora trabalhava como fisioterapeuta dermatofuncional e foi dona de um consultório na Asa Sul por mais de uma década. A clínica atendia, principalmente, pacientes que tinham passado por cirurgia plástica. “Eu trabalhava com estética, estava sempre muito arrumada, no salto. Médicas, dentistas e outras pessoas me perguntavam onde eu comprava minhas roupas e calçados. Eu dizia: não é o cabide, é quem usa”, relata.

Por essas e outras, era considerada esnobe. “Por ser preta, esperavam uma humildade, que, na verdade, é uma subserviência, de mim.” Largar tudo para morar na roça como mãe de santo foi um chamado desafiador. “Para uma pessoa urbanoide como eu, que amava minha profissão, foi difícil ir para o interior”, admite. Ela não se arrepende e diz ser feliz como sacerdotisa, apesar de também ter sido feliz como fisioterapeuta.

“Ser do candomblé não foi uma opção minha. Sempre disseram que era coisa do demônio”, conta. Filha de um espírita umbandista, ela tinha parte da família evangélica e teve liberdade religiosa no lar. “Eu fui para a Igreja Católica, só que lá eu sofria discriminação racial. Eu batia de frente com o que eu achava errado, questionava o padre: por que a igreja é tão rica enquanto o povo passa fome? Resultado: fui convidada a me retirar”, recorda.

“Era um lugar que não me dava voz, não me deixava falar.” Ela já havia tido algumas manifestações espirituais e foi para o centro espírita frequentado pelo pai. “Foi lá que encontrei o meu sossego. O candomblé é o meu cobertor velho, confortável, aquele que nos abraça, cobre e dá conforto”, define. Neste espaço, começou a trabalhar com alfabetização de adultos e outros projetos sociais. Em 27 de novembro, completaram-se 21 anos da iniciação no candomblé.

Na convivência com outros, foi questionada, pois as pessoas se sentiam no direito de falar da religião dela e dizer que era “errada”. A baiana muniu-se de argumentos e de respeito próprio, aprendendo a colocar limites. “Nós fomos ensinados a ser muito cordatos e pedir que as pessoas nos respeitem. Nossa religião fala da não violência, da cultura, da natureza… Todas as vidas são importantes para a gente. Nunca partimos para essa guerra santa”, afirma.

No entanto, há ocasiões em que a falta de respeito exige colocar um limite maior. “Uma vez, um sujeito, com a Bíblia debaixo do braço e acompanhado de várias mulheres, veio com um megafone para o portão da minha casa e começou a dizer que eu cultuava demônios”, recorda. “Se for para conversar e discutir, a gente pode sentar e conversar uma semana. Agora, não venha na minha casa querer impor sua ideologia!” Dora soltou, literalmente, os cachorros. Os cães correram atrás dele e o homem nunca mais voltou.


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