Pretos no topo

Especialistas discutem o que há de escravidão nas relações do trabalho

Após 133 anos da Lei Áurea, pesquisas revelam que homens brancos recebem duas vezes a mais do que mulheres negras. Em cargos de liderança, 94% são brancos

Carmen Souza
postado em 16/05/2021 17:30 / atualizado em 16/05/2021 18:15
 (crédito: Valério Ayres/Esp. CB/D.A Press)
(crédito: Valério Ayres/Esp. CB/D.A Press)

Heranças da escravidão

Enquanto o abolicionismo ganhava força no Brasil, Joaquim Nabuco, um dos principais líderes do movimento, fazia o alerta: permaneceríamos atrasados enquanto não resolvêssemos de vez a herança escravocrata. Mais de 130 anos depois da Lei Áurea, esse passivo histórico segue atravancando os avanços sociais, incluindo os ligados ao mundo do trabalho. Em um mês em que essas questões ganham força no país, convidamos especialistas de áreas diversas para enriquecer o debate. Afinal, o que ainda há da escravidão nas nossas relações profissionais?

Em cifras

R$ 1.865

É a renda média dos trabalhadores negros no Brasil

R$ 3.509

É a renda média dos trabalhadores não negros no Brasil

R$ 1 trilhão

Renda que seria adicionada ao mercado de trabalho caso os profissionais negros fossem remunerados como seus pares de outras raças


Fonte: Instituto Locomotiva/Grupo Carrefour

Desafios no trabalho livre é tema de exposição

As reflexões sobre a abolição da escravidão e seus desdobramentos são o que guiam a exposição Racismos — Lutas Negras no Trabalho Livre, disponível no Google Arts & Culture!. Por meio de fotografias e periódicos da imprensa negra e operária, é possível conhecer a situação de trabalhadores negros em diferentes centros urbanos brasileiros. O mergulho nesse Brasil desconhecido é embalado pela Rádio Amefricana, com narrações de momentos históricos e canções interpretadas pela sambista Cris Pereira. O material pode ser acessado em português e inglês e é fruto de uma parceria entre a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, o Geledés – Instituto da Mulher Negra e o Acervo Cultne. Aproveite: https://artsandculture.google.com/exhibit/racismos-lutas-negras-no-trabalho-livre/wAKSxxfMrwV9Kw.

O humano não tem cor?

Ana Flávia Magalhães Pinto, professora do Departamento de História da UnB
Ana Flávia Magalhães Pinto, professora do Departamento de História da UnB (foto: Webert da Cruz/Divulgação)

O escravo é negro e o trabalhador livre não tem cor. Embora a segunda oração pareça redimir os estigmas que fundamentam a primeira, uma é tão atravessada pelo racismo à brasileira quanto a outra. O modo como aprendemos a fixar a existência das pessoas negras na condição de “escravo” tem afetado nossa capacidade de confrontar práticas discriminatórias que organizam a ocupação dos lugares da liberdade, aqueles adequados aos efetivamente humanos, sem cor. Sobram casos a comprovar como os 133 anos da abolição não foram suficientes para desmontarmos matrizes narrativas que legitimam a violência cotidiana contra descendentes de africanos no Brasil. Não fosse assim, como que, num país em que mulheres e homens negros representam 54% da população, o 1º de maio não é tido como oportunidade para exaltar os feitos dos trabalhadores negros em benefício de toda a sociedade? Em vez disso, há um certo conforto em atribuir o início da luta dos trabalhadores por direitos à chegada de imigrantes europeus no final do século 19. Assim, não importa saber que a maioria da população negra já era livre nos últimos anos do escravismo, nem que muitos dos nossos protagonizaram a formação de importantes associações e partidos operários.

Contramão do mundo

Paulo Paim, senador
Paulo Paim, senador (foto: Agência Senado)

A herança da escravidão está presente em todas as áreas. Dados recentes mostram que homens brancos recebem, em média, 2,02 vezes a mais do que mulheres negras. Mulheres brancas têm salários maiores em 1,15 ponto percentual em comparação aos homens negros. Com forte atuação da bancada feminina, o Senado aprovou o meu relatório ao PLC 130/2011, que prevê multa no caso de discriminação salarial. Além disso, o desemprego entre negros é 71% maior que o entre brancos. E o fim da política de valorização do salário mínimo achata a renda dos trabalhadores mais pobres.Estamos na contramão do mundo. Enquanto os EUA valorizam o salário-mínimo e fortalecem as representações dos trabalhadores, aqui, aprofundamos a uberização, adotamos o trabalho intermitente e instituímos o negociado sobre o legislado. Estamos retirando direitos básicos e consagrados, como a garantia de jornada e a remuneração mínima mensal.

Discurso da incapacidade

Raphael Vicente, coordenador da Iniciativa Empresarial pela Igualdade
Raphael Vicente, coordenador da Iniciativa Empresarial pela Igualdade (foto: niciativa Empresarial pela Igualdade Racial/Divulgação)

Na passagem da mão de obra escrava para a assalariada, surgiu uma das políticas mais desumanas da história brasileira: a do branqueamento. O Estado trouxe europeus para branquear a população, alegando que os negros não conseguiriam assumir postos qualificados. Isso não fazia sentido, pois as funções não mudaram. Com essa política, os negros ficaram à margem de um período de grande crescimento econômico. Sobrou para eles a informalidade, o trabalho doméstico e a vida nas periferias. Carregamos esse discurso de incapacidade até hoje como se a culpa fosse do negro e não do sistema.Em 1930, 92% da indústria era ocupada por brancos. Mudamos um pouco essa base. E, hoje, discutimos a inclusão em cargos de alta liderança, onde estão 94% dos brancos. Essa leitura histórica ajuda a derrubar mitos. Um deles é a ideia de que o problema é a distribuição de renda. Não é. Nos momentos de pujança econômica, o negro não foi incluído. O argumento de falhas educacionais também não funciona, pois, mesmo com iniciativas de inclusão, o negro não chega a grandes empresas. Sobra a explicação do racismo.

R$ 1 milhão para Ongs de equidade

O Fundo Baobá para Equidade Racial, com o apoio do braço filantrópico do Google, o Google.org, lançou um programa para apoiar organizações que atuam no enfrentamento à violência racial sistêmica e incorreções do sistema de Justiça Criminal brasileiro. A iniciativa, intitulada Vidas negras: dignidade e justiça, vai selecionar 10 entidades e apoiar cada uma delas com R$ 100 mil para a execução dos projetos. Os escolhidos também receberão suporte técnico e capacitação de lideranças, em uma tentativa de viabilizar o fortalecimento das Ongs. Quatro áreas poderão ser contempladas: enfrentamento à violência racial sistêmica; proteção comunitária e promoção da equidade racial; enfrentamento ao encarceramento em massa entre adultos e jovens negros e redução da idade penal para adolescentes; e reparação para vítimas e sobreviventes de injustiças criminais com viés racial. As instituições interessadas devem inscrever suas propostas, até 6 de junho, no site do Fundo Baobá: https://baoba.org.br.

Ameaça às políticas de igualdade

A possibilidade de o governo federal não realizar o Censo 2021 por falta de previsão orçamentária é um ataque às políticas públicas de combate às desigualdades. O alerta é feito por Cida Bento, coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). O “tiro no IBGE”, segundo o artigo divulgado por ela na página da Ong, acerta diretamente os mais fragilizados. Sem o Censo e com o instituto de pesquisa enfraquecido, faltarão dados que mostram com detalhes as desigualdades sociais brasileiras e ajudam a subsidiar as políticas públicas. Cida Bento lembra que no cenário atual, de crise sanitária, essas informações são ainda mais necessárias. “Foram as estatísticas de sexo, cor/raça produzidas pelo IBGE que revelaram, por exemplo, que, durante a pandemia, a população negra foi a mais afetada pelo desemprego, a que mais foi a óbito pela covid-19, a que tem menor percentual de vacinados, a que menos pode cumprir o distanciamento porque é majoritária nos serviços essenciais das cidades”, justifica.

Inspiradora Clara

.
. (foto: Reprodução/Instagram)

Aos 8 anos, Clara Larchete está ganhando as redes sociais. O motivo? Ela é a modelo de releituras fotográficas de mulheres que fazem história — muitas delas mulheres negras. Com a produção e os cliques da mãe, Daiane Braz, 38 anos, a menina já se transformou em Marielle Franco, Michele Obama, Frida Kahlo, Conceição Evaristo (foto) e Lélia Gonzalez, entre outros ícones. As primeiras montagens foram para um trabalho de escola sobre Tarsila do Amaral, mas Daiane decidiu apresentar à filha outras referências e postar as fotos no Instagram. Os ensaios viralizaram. “Sei que ela não vai gravar tudo, pois tem 8 anos. Mas vai ficar ali uma sementinha plantada”, aposta a mãe. A ideia já rendeu frutos. “A gente está lembrando de pessoas que lutaram ou que lutam pelos seus sonhos e que não devemos desistir dos nossos sonhos, nem mesmo com as dificuldades”, diz Clara. A página @clarinha_larchete tem mais
de 34,5 mil seguidores.

Eterna Ruth de Souza

.
. (foto: Cedoc/TV Globo)

Maio é o mês de centenário de nascimento de Ruth de Souza, a primeira atriz negra a pisar no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Também são de Ruth os méritos de ser a primeira brasileira indicada a um prêmio internacional de cinema, pelo papel em Sinhá moça, em 1954, e a primeira protagonista negra da tevê brasileira, em A Cabana do Pai Tomás, em 1969. Nos 50 anos de carreira, a atriz fez mais de 30 novelas e abriu as portas para vários artistas afro-brasileiros. A referência da dramaturgia brasileira morreu aos 98 anos, em julho de 2019.


Assista

Saber juntos

.
. (foto: Fábio Porchat/Instagram)

Um novo significado de #sextou foi criado pelas advogadas As Souzas — Juliana e Sílvia Souza. A dupla lançou com o apresentador e ator Fábio Porchat o espaço de conversa Vamos falar?. Desde o último dia 30, o trio lança, todas as sextas-feiras, às 18h, um vídeo em que debatem temas como racismo, diversidade, inclusão e equidade. Estão previstos quatro episódios, e o conteúdo ficará disponível no IGTV de Fábio Porchat (@fabioporchat).

Samurai africano

.
. (foto: Netflix/Divulgação)

Um novo anime original da Netflix traz diversidade e fatos históricos para as telas. A série Yasuke conta a história do primeiro samurai negro, um homem africano levado ao Japão, no século 16, por jesuítas. No anime, o produtor LeSean Thomas imagina a vida de Yasuke 20 anos depois da chegada ao país asiático e inclui elementos futuristas na trama, como robôs gigantes. O protagonista é dublado pelo ator LaKeith Stanfield, indicado ao Oscar de melhor coadjuvante pelo filme Judas e o Messias Negro (2021).


Leia

Resgate histórico

.
. (foto: Editora Companhia das Letras/Divulgação)

Lançar luz sobre a trajetória trilhada por mais de 550 negros e negras que viveram no Brasil desde a escravidão até o fim do século 20. Eis a proposta da Enciclopédia negra. Flávio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz debruçaram-se sobre vasto material para tirar da invisibilidade homens e mulheres que também fizeram história. Nos verbetes biográficos, o leitor vai conhecer mães que lutaram pela alforria da família, curandeiros que salvaram doentes e ativistas que fundaram jornais. Como não há fotografias de boa parte das personalidades, artistas negros foram convidados para produzir os retratos dos biografados. Algumas imagens estão no livro, e todas fazem parte de uma exposição, também chamada Enciclopédia negra, que está em cartaz na Pinacoteca, em São Paulo, até 8 de novembro.

 

*Colaboraram Talita de Souza e Julia Mano

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação