modalidade de trabalho

Conheça a vida de jovens que trabalham em países diferentes do que moram

Os brasilienses Rodolfo Ferreira e Jéssica Faria tornaram-se nômades brasileiros. Outra Jéssica, a Cristina de Oliveira, é analista de produtos para vários países

Ana Luisa Araujo
Malu Sousa*
postado em 19/07/2021 20:24 / atualizado em 19/07/2021 20:26
 (crédito: Arquivo Pessoal)
(crédito: Arquivo Pessoal)

Muitas pessoas não chegaram nem a conhecer o espaço físico ou os colegas de trabalho e chefe da empresa em que foram contratadas durante a pandemia. Esse é o caso de Rodolfo Ferreira, 27 anos, e de Jéssica Faria, 31.

Jéssica trabalha como gerente de produtos, desde 2018, para a empresa de um país com mais de 1,3 bilhão de habitantes, apesar de atualmente morar em uma cidade com pouco mais de 30 mil pessoas. A jovem faz parte da chinesa 99, empresa de aplicativo de viagens, e, antes da pandemia, trabalhava na capital paulista. Mas a realidade atual permitiu ela morar no interior, em Santa Fé do Sul, a 626 km de São Paulo.

Como membro do time de Produtos, Jéssica é responsável por apresentar as necessidades do mercado local para os times de desenvolvimento, além de produzir novas funcionalidades do aplicativo, principalmente, relacionadas a mapas, incentivos para motoristas e passageiros e precificação.

No início da entrevista, ela logo explica que a matriz da empresa é chinesa e não se chama apenas 99, mas utiliza-se o nome 99/DiDi. Ela conheceu diversos escritórios do Brasil, em São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre, e iria conhecer o da China, mas a pandemia a impediu.

Segundo ela, o contato maior é com as equipes chinesas. “Isso, para mim, é um dos diferenciais do meu trabalho. Acredito que a experiência de trabalhar com times internacionais seja muito enriquecedora: nesses quase três anos, aprendi sobre uma cultura diferente, como adaptar meu modo de trabalho ao modo do time internacional, como deixar minha comunicação mais clara e objetiva, e tive a chance de perceber que, apesar de parecermos muito diferentes, temos muito em comum”.

O fuso horário foi um complicador, porque a China está onze horas à frente do Brasil. Mas, depois que o home office entrou para o dia a dia da empresa, esse fator deixou de ser crítico. De acordo com a gerente de produtos, há mais flexibilidade com os horários de trabalho.

Ela termina a entrevista citando o trecho do livro ‘The Culture Map’: “A experiência de trabalhar com times internacionais é incrível, mas é preciso ter muita paciência, ser resiliente e estar disposto a se adaptar. Se comunicar constantemente em outra língua pode ser complexo e cansativo, e o fuso horário também é um complicador. É preciso ter flexibilidade de horários e entender que a cultura diferente impacta diretamente na forma em como as pessoas trabalham”. (Erin Meyer)

Rodolfo é desenvolvedor de software e se tornou nômade digital após ser abordado por uma recrutadora no LinkedIn, em abril deste ano. A pandemia já tinha feito com que ele trabalhasse, a partir de casa, para uma empresa do Distrito Federal.

O jovem nunca chegou a conhecer o espaço físico porque não tem local em Brasília, apenas escritórios em São Paulo, Rio de Janeiro, entre outros estados.

No ramo de trabalho de Rodolfo, ele afirma que não é possível ter muita proximidade com os colegas porque a modalidade não facilita interações, assim como o formato presencial. “Torna-se mais difícil formar vínculos”, diz.

A adaptação do programador foi difícil. Ele conta que trocou de emprego três vezes durante a pandemia, e todas eram de forma remota. Na primeira experiência, ele afirma ter se sentido de alguma forma perdendo a chance de aprender mais com os colegas “sêniores” por não estar presencialmente.

“A simples convivência com alguém que tem anos de experiência é um ótimo fator para contribuir com o seu crescimento, mas foi algo que eu aprendi a superar e hoje não me imagino mais trabalhando em um modelo presencial”, relata.

Na área em que atua, o setor de tecnologia, Rodolfo acredita que o modelo remoto chegou para ficar. Grande parte das empresas do ramo foram obrigadas a se adaptar ao trabalho a distância por conta da escassez de profissionais qualificados. Com a possibilidade de buscar trabalhadores em qualquer lugar do globo, isso se tornou mais fácil, segundo ele.

Para o desenvolvedor, o tempo que o home office permite que ele dedique à família é um grande diferencial, além de outras vantagens, como poupar gastos com transporte.

Para o mundo todo

Jéssica Cristina passa os pedidos e reclamações aos desenvolvedores
Jéssica Cristina passa os pedidos e reclamações aos desenvolvedores (foto: Arquivo Pessoal)

Apesar de o nome ser FBM-Brasil, a empresa se espalhou para outros lugares do mundo e hoje tem polos de atuação em: Portugal, Malta, México, Espanha e Filipinas. E Jéssica Cristina de Oliveira, 29 anos, trabalha para todos eles. A jovem está na empresa há dois anos, e começou a trabalhar nela oito meses antes da pandemia iniciar, no modelo remoto.

Ela ocupa o cargo de analista de produtos na empresa em questão. E explica que o trabalho dela é receber pedidos de melhorias dos diversos produtos que a empresa lança no mercado. De acordo com Jéssica, a empresa é solicitada para consertar bugs, para incluir campos, ou criar uma tela para uma nova necessidade do mercado.

“Eu recebo esses pedidos, faço uma análise do que realmente seria, qual é a real necessidade do nosso cliente, o que impactaria no sistema. Com isso, desenvolvo protótipos e documentos, assim, passo para a equipe de desenvolvimento para que seja implementado o pedido”, conclui.

Apesar da distância, ela diz que é fácil se manter conectada aos seus colegas de trabalho, dentro e fora do ambiente corporativo virtual. Ao ser questionada se pensa em mudar de país para estar mais próxima de algum polo, ela responde que, a princípio, está feliz onde está, em São Paulo. Jéssica diz que é muito produtiva em casa, mas sente falta de trabalhar presencialmente. “Como um dos nossos produtos principais está passando por melhoria, o ideal é que eu permaneça aqui (em São Paulo), mas é algo a se pensar”, afirma.

O que a lei diz sobre o trabalho remoto

Cristiane Pereira Viana: "(O trabalho remoto) facilitou também que empresas estrangeiras e nacionais, dos mais diversos segmentos, aderissem a essa prática, realizando a contratação do trabalhador exclusivamente de forma remota"
Cristiane Pereira Viana: "(O trabalho remoto) facilitou também que empresas estrangeiras e nacionais, dos mais diversos segmentos, aderissem a essa prática, realizando a contratação do trabalhador exclusivamente de forma remota" (foto: Arquivo Pessoal)

Nada impede que Álvaro Fernando, desenvolvedor de software, ou Jéssica Cristina, analista de produtos, trabalhem para outro país. No entanto, alguns elementos devem ser analisados quando um empregado presta serviços para um local com legislação diferente de onde reside.

O valor do salário, tributação, cargo e controle de jornada, além de benefícios, tudo isso deve ser formalizado no contrato de trabalho. É o que recomenda a advogada especialista em direitos trabalhistas Cristiane Pereira Vianna, 41 anos.

A professora, mestra da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), explica que o contrato de trabalho individual, pactuado no Brasil para ser exercido em território estrangeiro, passa a ser considerado contrato internacional de trabalho, uma vez que envolvem pontos de conexão com duas ou mais jurisdições.

“A grande questão seria a interpretação no caso do trabalho remoto, já que o empregado é contratado no Brasil, presta serviços aqui, porém, a empresa, está localizada no exterior. A dúvida surge em identificar quais são os elementos da relação (nacionais e internacionais) e verificar quais os pontos de conexão, para que seja possível identificar o ordenamento jurídico que tem mais contato com a relação laboral”, argumenta Cristiane.

De acordo com o que ela explica, um contrato de trabalho somente passa a ser considerado internacional quando há elemento incomum relacionado à nacionalidade, ao local da contratação, e ao da prestação de serviços.

Em relação ao home office, ele recebe um nome oficial na legislação: teletrabalho, e é regularizado pela Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista). Cristiane explica que esse instrumento possibilitou, como uma das alternativas, em meio à necessidade de isolamento social, a contratação de empregados por meio desse regime.

“Esse tipo de regime de trabalho tornou-se mais evidente nesse momento pandêmico. Permitiu a reversão do regime de trabalho presencial para o teletrabalho, e não somente isso, facilitou, também, que empresas estrangeiras e nacionais, dos mais diversos segmentos, aderissem a essa prática, realizando a contratação do trabalhador exclusivamente de forma remota por ser possível executar as tarefas de casa sem o deslocamento para a empresa”, explica a advogada especialista em direitos trabalhistas.

O Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, informa, em nota, que não há como falar de todas os casos de uma maneira geral, porque cada país tem uma legislação que precisa estar em consonância com o que é permitido no Brasil.

“Não temos como tratar de todas as situações, pois depende da situação em si e envolvem diversas leis, acordos etc. Tanto brasileiros, quanto internacionais, ou do país da empresa ou da morada do trabalhador. Tudo depende, também, do contrato, e da função que vai exercer. É algo muito complexo que envolve várias variáveis para cada situação específica”.

 

*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Luisa Araujo

 

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