Pretos no topo

Literatura antirracista

A diversidade chegou ao universo da literatura infantojuvenil, enchendo as prateleiras de livros que abordam as questões raciais de um jeito que enriquece o imaginário e a identidade das crianças. Escritores e escritoras contam como é traçar esses enredos tão representativos e as expectativas em torno das repercussões de suas obras nos pequenos leitores

Carmen Souza
postado em 18/10/2021 21:02 / atualizado em 18/10/2021 21:02
 (crédito: Arquivo Pessoal/Divulgação)
(crédito: Arquivo Pessoal/Divulgação)

Literatura de cura

“A minha literatura é de cura. Ela trabalha a partir de histórias com fundo real, não fugindo dos desafios ligados às questões raciais e, a partir daí, trazendo soluções. São duas chaves: um foco nos direitos humanos, no direito a viver com respeito; e o outro foco no poder amar o próprio corpo. Esse resgate da autoestima está ligado a um processo de cura. Cura por conta dos efeitos do racismo, que acaba dizimando as identidades, provocando rupturas psíquicas. Acredito que uma das ferramentas fundamentais para provocar as suturas das identidades deterioradas pelo racismo é o campo da literatura. No mundo ocidental, a gente tende a olhar para as crianças como completamente dependentes dos adultos, e, assim, a gente perde a oportunidade de ouvi-las. Eu me inspiro em culturas africanas e indígenas em que elas são seres primordiais para começarmos a mudar nossos paradigmas. Começar pela infância é mais difícil, mas é mais encantador. Acredito nas crianças, em uma infância focada no trabalho do autoamor, de olhar para a diversidade como um território de encontros, não de separação.”

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Kiusam de Oliveira tem, entre as suas obras, os livros Com qual penteado eu vou? e O blackpower de Akin e Omo-oba: histórias de princesas.

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. (foto: Arquivo Pessoal)

Mais universos criativos

“Minha tentativa é trazer outros universos criativos, variando entre temas que, no geral, são tratados com protagonistas negros na literatura infantil e trazendo outros assuntos que não os que, em algum momento, foram colocados como temas de personagens negros. Então, claro que eu falo de autoestima, de representação, mas, ao mesmo tempo, falo no Sinto o que sinto de identificação, de sentimento, de saber nomear sentimentos e saber como lidar com eles. Faço também um minidicionário de explicação de coisas do mundo através de rimas. E lá dentro tem tudo, desde saudade, autoestima, pai, mãe, avó, avô, morte. É sempre uma busca trazer a humanidade e a complexidade que todos nós somos. É importante para as crianças negras se sentirem incluídas, protagonistas, possíveis. Estimular o sonho nas crianças e, ao mesmo tempo, ajudar para que toda e qualquer criança perceba o que o mundo realmente é. O mundo é diverso e maravilhoso por excelência, é isso que tento colocar na minha literatura. E sempre inspirado na convivência com as crianças. Nos primeiros livros, eu observava sobrinhos, afilhados. Depois, meus filhos se tornaram minha principal fonte de inspiração.”


Lázaro Ramos tem, entre as suas obras, Sinto o que sinto: e a incrível história de Asta e Jaser, Caderno de rimas do João e Caderno sem rimas da Maria

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. (foto: Arquivo Pessoal)

Resgate da autoestima

“Eu quero dar às crianças as informações que eu não tive nessa idade. Olho para as minhas fotos e vejo que eu era uma criança bonita, sorridente, mas carregada de uma baixa autoestima devido a diversos atravessamentos. Se uma criança preta passar a infância se vendo apenas como colega do protagonista, que tipo de mensagem passamos para ela? Temos o dever de escrever, desenhar e contar para as próximas gerações que elas podem ocupar qualquer espaço. Minhas inspirações vêm das questões que levanto ao revisitar o passado. Expressões que me marcam, momentos que eu passei e me pergunto por que eu agi de tal forma. Busco respostas e, algumas vezes, rendem histórias que valem a pena ser contadas.”


Estevão Ribeiro tem, entre as suas obras, Rê Tinta e o Pé de Jamelão, a coletânea de tirinhas Os passarinhos e foi roteirista da Turma da Mônica, escrevendo, inclusive, histórias para a personagem Milena

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. (foto: Arquivo Pessoal)

Percepções amplas

“Quando escrevemos literatura para crianças, assumimos um compromisso com a formação de leitores. Isso significa que almejamos para eles leituras em diversos níveis, para além daquilo que vemos explicitado nos textos. Queremos que as crianças percebam as relações que estão nos textos e entre os textos. Desse modo, eu busquei escrever um livro que tratasse da diversidade em sentido amplo, por meio de uma grande alegoria: a criação de mundo doce dentro de um tacho. Penso que o momento histórico me impeliu a escrever um livro em que crianças negras fossem representadas fora da perspectiva estereotipada da violência e da subalternidade quase sempre associadas ao povo preto. Tâmara e Tamarindo são protagonistas da criação de um mundo mágico e metafórico. Escrevo com comprometimento social. Literatura não é, para mim, simples entretenimento. Por meio da experiência de leitura, busco plantar sementinhas de coisas que levem a criança a pensar, imaginar, plantar outras sementes. No caso do livro, trouxe a questão que envolve as pluralidades e a falsa noção que faz da homogeneidade um perigo de onde partem muitos preconceitos.”

 

André Lúcio Bento é professor e idealizador do site Baobá Brasil, que é parte do projeto de registro das árvores africanas no DF. O livro Tâmara e Tamarindo na terra das coisas e das pessoas doces é sua estreia na literatura infantil

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. (foto: Arquivo Pessoal)

Letramento racial

“A literatura voltada para infâncias com representatividade negra positiva presta um grande serviço educativo, na medida em que atua como material de formação racial, contribuindo para a tão sonhada sociedade antirracista que desejamos, para o combate efetivo ao racismo estrutural que nos identifica como país. Acredito que os livros voltados para a infância atuam como letramento racial, isto é, através do contato com essas literaturas com temática negra, a criança leitora, ou ouvinte, amplia seu conhecimento de mundo sobre diversidade. No caso da criança negra, ela fortalece a identidade, aumentando a autoestima. Quanto às crianças não negras, elas têm, nesses episódios, a oportunidade de desenvolverem o afeto e a empatia pelas pessoas negras. Muitas das vezes, é por meio do contato com esses livros que elas têm a possibilidade de encontrar personagens negras em protagonismo, amadas, repletas de humanidades, com famílias e histórias para contar. Essas histórias abraçam as crianças, todas as crianças.”


Sonia Rosa tem, entre suas obras, Enquanto o almoço não fica pronto, O dragão do mar e É o tambor de crioula

COTAS NAS UNIVERSIDADES »

"Basta renovar a lei como está"

"Qualquer mudança, com esse Congresso ultraconservador, pode prejudicar muito o povo negro. A chance de nossas pautas saírem melhores são poucas"
"Qualquer mudança, com esse Congresso ultraconservador, pode prejudicar muito o povo negro. A chance de nossas pautas saírem melhores são poucas" (foto: Ed Alves/CB/D.A Press)

A ideia é defendida pela Educafro, que há mais de 30 anos trabalha pela inclusão de negros e pobres nas universidades públicas brasileiras. Segundo frei David (foto), diretor executivo da ONG, o cenário não é favorável a mudanças na Lei 12.711, que precisa ser revisada até agosto de 2022, quando completará 10 anos. A falta de um estudo embasado sobre os efeitos da política afirmativa e a composição mais conservadora do Congresso embasam a estratégia. “Nossa tese é de que a lei não seja mexida. No máximo, que seja renovada por mais 10 anos”, enfatiza. Em entrevista à coluna, frei David também fala sobre pontos que precisam ser aprimorados na legislação em um outro momento.

O que precisa ser reavaliado na lei de cotas?
Umas das coisas que não deram certo é o alto índice de fraude nos cursos caros, como medicina e odontologia. Cerca de 80% das vagas desses cursos foram fraudadas por brancos que se declararam negros. Isso aconteceu porque as instituições de ensino não foram sérias para criar com qualidade as comissões de heteroidentificação e fazer um trabalho bastante profissional treinando os seus membros. Então, o trabalho foi muito malfeito e foram perdidas muitas vagas. As pesquisas indicam um número maior de negros nas universidades, mas elas estão equivocadas, até porque não é missão delas checar se a pessoa que se declarou negra realmente é. Houve um boicote. O direito administrativo boicotou o constitucional. A Constituição quer igualdade, e o direito administrativo, facilidade em administrar, sem ter trabalho, investimento. Então, o povo negro foi vítima da compreensão administrativa dos administradores das universidades, que foram desonestos e lentos no processo de garantir que a política pública fosse eficiente.

Como considerar questões desse tipo para se chegar a uma reavaliação eficiente?
A lei atual, nos artigos 6º e 7º, diz que é obrigação do Ministério da Educação (MEC) elaborar um estudo nacional sobre o desempenho da lei e dos cotistas. Portanto, deputados e senadores só podem fazer mudanças na lei depois desse estudo. O presidente Bolsonaro cortou a verba do MEC para fazer a pesquisa nacional. Então, para nós, da Educafro, não há nenhuma condição do Senado e da Câmara de fazer alguma mudança na lei, a não ser deixá-la por mais 10 anos, até o MEC cumprir a função dele. Defendemos que se amplie o prazo da lei, sem mudanças. Basta renovar a lei como ela está, nem os problemas da lei precisam ser mexidos agora. Qualquer mudança, com esse Congresso ultraconservador, pode prejudicar muito o povo negro. A chance de nossas pautas saírem melhores são poucas.


** A lei de cotas em universidades públicas federais deve passar por uma revisão, prevista em lei, quando completar 10 anos, em agosto de 2022. Abrimos aqui um espaço para ampliar o debate sobre este momento significativo.

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