Pretos no topo

Coluna Pretos no topo

Conheça projetos de escolas públicas do DF voltados para o fortalecimento de uma educação antirracista

Carmem Souza
postado em 21/11/2021 18:44 / atualizado em 21/11/2021 18:44
 (crédito: Arquivo Pessoal)
(crédito: Arquivo Pessoal)

Educação antirracista o ano todo

Laura Vieira*

O Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado ontem, é um momento de reflexão sobre a importância de se discutir a formação social do Brasil e as relações de poder. Mas pode ser mais. Novembro também é um convite para o planejamento e o estabelecimento de iniciativas que combatam o racismo estrutural e incentivem políticas antirracistas ao longo de todo o ano, em todas as instituições — incluindo as educacionais.

Por meio da Lei nº 10.639, instituída em 9 de janeiro de 2003 e alterada pela Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, o tema história e cultura afro-brasileira e indígena se tornou um componente curricular obrigatório na educação básica brasileira. Apesar do avanço, há dificuldades. Uma delas, aponta a neuropsicopedagoga Janaína Almeida, é a falta de um alicerce pedagógico.

“A Lei 10.639 ainda está muito geral e distante da realidade do chão da escola, porque muitos professores, por não se identificarem nem negros nem afrodescendentes, dificilmente se apropriam dessas questões”, justifica. “Então, muitas vezes, o trabalho se limita aos professores negros, à semana ou ao dia da Consciência Negra, e se passa o ano todo sem falar sobre racismo na escola, sem se promover ações.”

Janaína enfatiza que o trabalho é muito mais amplo do que propriamente uma ação de combate e enfrentamento ao racismo. “Consiste em um conjunto de processos, métodos, atividades e ações afirmativas que fortalece, além da luta antirracista, as culturas africana e negra e desmobiliza o racismo estrutural”, defende. Há, no Distrito Federal, iniciativas nesse sentido. Conheça algumas delas.

No currículo descentralizado

Em 2018, a professora de artes Daniela Pessoa dava aula para turmas do ensino médio quando percebeu uma resistência, entre os jovens, em falar sobre a cultura afro-brasileira. A baiana de Salvador se surpreendeu. “Desde que cheguei aqui (no DF), já sentia isso. Mas, para mim, foi um choque muito grande”, conta.

Professora e alunos chegaram à conclusão de que, nas escolas, apenas culturas hegemônicas eram estudadas, e veio a ideia de mudar essa dinâmica. “Não centralizamos em uma única cultura, que é o que vem acontecendo há séculos, principalmente na escola, que tem um currículo eurocêntrico. A gente tenta descentralizar esse conhecimento cultural”, conta a criadora do AFRINs EnCena.

O projeto é voltado para encenações das culturas africana, afro-brasileira e indígena, levando às escolas histórias mitológicas pouco abordadas. As representações são feitas por quatro docentes da Secretaria de Educação — André Guarany, Cleiton Jesus, a própria Daniela e Gleide Firmino, 35 —, além da gestora de projetos Lilian Aguiar.”É um trabalho que nasceu na escola e volta para a escola”, comemora Daniela.


Em histórias de superação

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. (foto: Arquivo Pessoal)

A ideia de criar o Flor de Ayana surgiu depois que a filha de Danielle Reis, à época com 3 anos, foi vítima de racismo por parte de outra criança. “Quando eu estava grávida, pensei que isso aconteceria, mas foi muito antes”, conta. A professora da educação infantil resolveu, então, escrever uma história para dar vida à Ayana e convidou Flávia Louredo, que presenciou a filha passar por situação semelhante, para ilustrar o livro.

A obra conta o episódio de racismo, mas a partir de um roteiro que aposta que, por meio de uma linguagem infantil, é possível promover transformações sociais na base. E, para ampliar ainda mais esse efeito, a obra virou um curta-metragem traduzido na Língua Brasileira de Sinais (Libras). O trabalho venceu, em 2020, o prêmio de melhor curta feito por professores em um concurso da Secretaria de Educação.

Agora, o trio busca parcerias para espalhar as obras pelas escolas da cidade. O desejo é alcançar o máximo de crianças possível. “Trouxemos protagonistas negros para as crianças se sentirem representadas, para que percebam a potência que elas têm e para que conheçam as suas raízes”, diz Flávia.


Na força dos cabelos

O Crespas e Cacheadas surgiu da observação de uma professora do Centro de Ensino Médio 02 de Ceilândia de que muitas alunas se sentiam inseguras em relação ao cabelo afro, geralmente, por vergonha e sentimento de inferioridade. Assim, em 2013, nasceu a ideia de fotografá-las e mostrar a beleza de seus traços e fios.

Seis anos depois, as imagens passaram a ser divulgadas na escola. Inicialmente, no 20 de novembro e com fotos de alunas. Hoje, todos podem participar da iniciativa, que tem desdobramentos ao longo do ano. “Esse projeto veio para empoderar os pretos e as pretas do CEM 02”, diz o diretor Eliel Aquino.

A supervisora Amanda Freire conta que, com os ensaios fotográficos, a escola motiva os alunos a valorizarem os diversos cabelos, aparências e raízes. “Quem ensinou o negro a odiar os próprios traços foi o projeto cruel de eugenia, que destruiu não só os povos, mas a autoestima”, diz. “Aqui, a gente quer que as pessoas se enxerguem como bonitas, que sintam orgulho delas mesmas.Também podemos estar nas capas de revista”.


Nos espaços de poder

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. (foto: Arquivo Pessoal)

O Projeto 365 Dias de Consciência Negra surgiu em 2018, quando Margareth Alves, professora do Centro Educacional 310 de Santa Maria, conversava com uma estudante sobre dificuldades em se perceber negra e discriminação. Margareth apostou em imagens e letras para mudar esse roteiro: passou a fotografar os alunos na biblioteca. “As fotografias trabalham a questão da autoestima, do empoderamento e da força. A biblioteca é um espaço de poder, e o negro tem que estar em espaços de poder”, diz.

Na tentativa de favorecer a autoestima e o autoconhecimento, a iniciativa engloba, também, desfiles pedagógicos, rodas de conversa e shows musicais, entre outras atividades. “Eu desejo que jovens negros possam ter o direito de fazer o que tiverem vontade, de sonhar e tornar seus sonhos em realidade sem serem impedidos pela cor da pele”, afirma Margareth.

O projeto conta com a participação de outros professores e também incentiva o fortalecimento de valores pessoais e humanos. “Quem educa pode, e deve usar, a arma mais poderosa contra o racismo: a educação. Não importa a sua cor, apenas contribua nessa luta”, convida a professora.


PARTICIPE

Defensores e jornalistas debatem racismo

Como desdobramento da campanha Racismo se combate em todo lugar, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) promoverá, nesta sexta-feira, o seminário Atuação antirracista da Defensoria Pública na perspectiva criminal. O evento será realizado, das 9h às 13h, na sede do Sindicato dos Jornalistas de Brasília. A ideia é, a partir de um diálogo entre defensores e jornalistas, analisar como discursos e representações podem contribuir para a projeção da imagem da pessoa negra na sociedade. A titular desta coluna participará do painel Representatividade negra na grande imprensa, ao lado do jornalista Luiz Fara Monteiro, da Record, e da defensora pública da Bahia e coordenadora da Comissão Temática da Igualdade Étnico-Racial da Anadep, Clarissa Verena. Inscrições gratuitas no site www.anadep.org.br .


Cotas nas universidades

Enem ameaçado

Conturbado em 2020, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2021 desperta ainda mais preocupação. Em um ano, o número de candidatos que se consideram negros caiu 52%, segundo levantamento do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp). Há ainda a suspeita de que interferências do governo intensifiquem esse cenário pouco favorável ao pluralismo nas universidades. Sem diversidade, não há democracia, alerta Renísia Cristina Garcia Filice, professora-associada da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Em parceria com o aluno Everaudo Lacerda Lopes Filho, Renísia traz reflexões sobre a crise atual.

Que cara feia é essa?


“O Enem começa a ter a cara do governo”, disse o atual presidente num contexto em que servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) denunciaram sofrer pressão psicológica e vigilância velada em torno no processo de elaboração do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e na formulação da prova. O impacto da fala gera grandes incertezas sobre um exame que é um dos mais importantes do país.

Criado em 1998, o Enem não tinha o intuito de ser apenas uma forma de ingresso para o ensino superior, objetivava ser uma forma de avaliação do ensino brasileiro. E se tornou o processo seletivo com maior potencial para o ingresso em instituições de ensino superior (IES), que passaram a utilizar as notas dos/as candidatos/as como forma de acesso.

A popularização do Enem se deve à isenção da taxa de pagamento para alunos/as de escolas públicas e com cadastro no CadÚnico do governo federal; à possibilidade da nota para certificação de conclusão do ensino médio e para concorrer a bolsas do Prouni, que ampliou o acesso ao ensino privado. Tornou-se uma das mais impactantes ações públicas dos últimos anos.

Esperava-se que o acesso das camadas mais marginalizadas da sociedade (negros/as, pessoas em situação de vulnerabilidade e pobreza, indígenas, ribeirinhos, quilombolas) pudesse mudar o cenário das IES. Que tivéssemos um ensino superior menos elitista e embranquecido, e que diferentes segmentos com variadas trajetórias singulares num espaço de elaboração do pensamento complexo pudessem consolidar uma IES mais democrática e crítica em relação a problemas estruturais, como racismo, sexismo, classicismo e a condição de subalternidade em que o Brasil vem recorrentemente se colocando, e sendo colocado.

Outra ação pública da mesmo período do Enem é a implementação de políticas de ações afirmativas (PAA), a reserva de vagas para negros/as e índigenas, que ficaram subsumidas na Lei 12.711/2012, que reserva 50% de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas. Combinadas, as PAA e o Enem potencializaram a mudança do perfil nas IES. Entretanto, além dos limites de ambas no acesso, é preciso citar a permanência. A concessão de bolsas de pesquisa, projetos de extensão, a ampliação do passe livre estudantil, o apoio para compra de materiais pedagógicos, livros e outras demandas precisam se conectar com uma robusta política nacional de assistência estudantil. E isso não tem ocorrido.

Com a pandemia da covid-19, intensificaram-se as desigualdades sociais e raciais, e registrou-se a maior baixa nas inscrições para o Enem desde 2005. A insistência do governo federal em realizar a prova em 2020, em meio a altíssimas taxas de transmissão e número de mortes, em que estudantes do ensino médio estavam impedidos de finalizar os estudo e a necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF) para resguardar a isenção de taxa em 2021, tenciona(ra)m ainda mais o quadro .

E o que se vê agora? Uma enxurrada de demissões gerando incerteza sobre o sigilo e a realização do Enem. E, qual a resposta do atual presidente ? “O Enem começa a ter a cara do governo”. Fica a pergunta: que cara feia é essa? Sem educação, sem investimento e sem diversidade, não há democracia. E a democracia tem que ser a cara de qualquer governo.


A lei de cotas em universidades públicas federais deve passar por uma revisão, prevista em lei, quando completar 10 anos, em agosto de 2022. Abrimos aqui um espaço para ampliar o debate sobre este momento significativo.


* Estagiária sob supervisão de Carmen Souza

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