Um dos pontos do estudo feito pelo governo para flexibilizar as leis trabalhistas que têm gerado mais discussão é a possibilidade do não reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e aplicativos. O estudo propõe que não há relação de emprego, no sentido técnico da palavra, entre a empresa e o prestador de serviço. Por essa razão, a avaliação é de que a relação deveria ser regulamentada pelo Código Comercial e não pelas leis trabalhistas.
Devido ao cenário econômico, o Brasil, assim como outros países, tem vivido a chamada "uberização do trabalho". O termo define a relação de trabalho decorrente da popularização dos aplicativos de contratação de serviço por demanda. Nessa dinâmica, ocorre a informalização das relações trabalhistas. Em decorrência da pandemia, a nova forma de serviço é uma alternativa ao desemprego. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil possui cerca de 1,4 milhão de trabalhadores no setor de transporte de passageiros e mercadorias.
A advogada Érika de Mello reconhece que a uberização é um desafio mundial e que não basta definir se é ou não vínculo de emprego. "Nossa CLT fala quais são os requisitos do vínculo empregatício, a legislação não trata assim por função", diz. "O foco tem que ser em como essa nova organização de trabalho vai ser tratada, de uma forma que garanta os mínimos direitos."
De acordo com a advogada, a solução não é criar um conflito com o que já está na legislação, que define os requisitos para que exista o vínculo. "O objetivo da lei é trazer solução para uma demanda social. Por essa razão, é necessário um ambiente favorável de trabalho, para que haja o equilíbrio entre a empresa e o profissional", afirma.
Por outro lado, ainda segundo ela, se o vínculo for reconhecido, a tendência é de que haja um desencorajamento para as plataformas continuarem a funcionar. Érika é mais uma a defender que a melhor solução seja um debate com múltiplas perspectivas, para que se esclareça os prós e os contras. "O tema não se esgota tão facilmente. Os interessados devem ser ouvidos. Assim, vai ser construído algo sólido e coerente, que se baseia na demanda da sociedade", reflete.
O juiz trabalhista Otavio Calvet adianta que esse é um assunto que precisa de definição legislativa, pois atinge milhões de brasileiros. Para ele, a solução mais adequada seria o não reconhecimento do vínculo, por ser difícil encaixar um novo tipo de trabalho em uma fórmula tradicional. "É um trabalhador muito mais flexível e que, normalmente, não tem horário pra cumprir", destaca. "Muitas vezes, parece que o vínculo vai ser a grande solução para proteger o trabalhador, só que as pessoas esquecem que, infelizmente, existe uma conta para ser fechada", diz, frisando que a questão é muito complexa, mas que, caso seja decidido que não haja vínculo, é necessário uma nova regulamentação com a proteção adequada.
O que o texto ainda prevê
O estudo do governo que flexibiliza a legislação tabalhista tem como objetivo legalizar o chamado lock-out, ou locaute em português, que seria a greve dos patrões. A prática hoje é vedada pela CLT, artigo 722, e impõe, inclusive, pena àqueles empregadores que suspenderem os trabalhos sem autorização do tribunal competente.
Assim como ocorre, normalmente, em greves de trabalhadores, a dos empregadores seria para impor alguma medida que não estivesse sendo aceita, sob pena da paralisação das atividades na empresa.
Outro ponto polêmico que tem sido amplamente debatido é o fim da multa de 40% sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para trabalhadores demitidos sem justa causa.
Essas alterações, que ainda estão em discussão sobre o FGTS, resultariam, ao final, na criação de um único fundo de proteção ao desemprego, ainda com o depósito mensal de 8%. O governo federal, então, pretende "turbinar", com recursos do seguro-desemprego, nos primeiros 30 meses, esse fundo com depósitos de até 16% para quem recebe até um salário mínimo.
Desproteção dos trabalhadores, diz CUT
Sérgio Nobre, presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), avalia que o fato de o estudo do Grupo de Altos Estudos (Gaet) sobre a legislação trabalhista ter sido elaborado sem nenhuma participação de representantes da classe trabalhadora e sob a coordenação do ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra — que atuou na elaboração da reforma imposta por Michel Temer, em 2017 — diz muito sobre o seu objetivo. A finalidade da reforma seria, então, "fazer um ajuste fino para preencher as lacunas deixadas e garantir a flexibilização proposta à época, legalizando formas precárias de vínculo entre trabalhador e empresa".
O projeto viabiliza, na visão da CUT, inúmeras práticas de desproteção dos trabalhadores, para dar aos patrões segurança jurídica e possibilitar que "contratem e demitam da forma que quiserem". A proposta, de acordo com o órgão representativo, limita e impede o sindicato de atuar e representar a classe trabalhadora. "Sem sindicatos fortes, um país não é verdadeiramente democrático", declara Sérgio Nobre.
"Feita sob o pretexto de gerar empregos (2 milhões em 2 anos, segundo projeção do então governo), a reforma de 2017 retirou direitos, fracassou e não gerou postos de trabalho", avalia o presidente da CUT.
Caso uma nova reforma trabalhista venha a ser proposta pelo governo federal com base nesse estudo, e, se aprovado, "será mais um desastre assinado por Bolsonaro contra a classe trabalhadora", na opinião dele. Segundo o líder sindical, o custo social de uma reforma feita sobre essas bases será bem mais profundo do que os ganhos do capital. "O que o governo quer para os trabalhadores não é emprego, é escravidão", afirma. (ALA)
Aumento da insegurança jurídica
Em meio às divergências de opiniões, os especialistas concordam em um ponto: a necessidade de amplo debate antes da aprovação das novas regras, em busca de equilíbrio entre os envolvidos. Além disso, entendem que o ponto mais importante a ser pensado é a insegurança jurídica.
Para a advogada trabalhista Karolen Gualda, se as ideias não forem debatidas e o estudo for aprovado da forma que foi proposto, haverá, novamente, uma "avalanche de ações judiciais de inconstitucionalidade". Também advogada, Érika de Mello segue a mesma linha e acredita que são temas sensíveis e que não adianta legislar de uma forma impositiva para solucionar questões sociais amplas. "Há pontos relevantes que precisam ser tratados com coerência", diz. "Tem que ser feito o alinhamento com a demanda social, se não, de novo, a situação da insegurança jurídica vai piorar", alerta.
O juiz trabalhista Otavio Calvet explica que, atualmente, é permitido que cada magistrado faça uma análise da legislação a partir de princípios e valores que estão na Constituição. Dessa forma, cabe ao juiz o poder de declarar uma lei inconstitucional. "Na teoria, é muito interessante. Contudo, na prática acaba gerando grande insegurança jurídica, pois os princípios e valores da constituição são muito abstratos", reflete.
Calvet observa que na área trabalhista esse problema é recorrente porque a origem do estudo do direito do trabalho é a luta de classes. "São muitas ideologias, e elas estão fortes. Isso afeta muito a forma de entender o direito do trabalho, por isso, a insegurança jurídica acaba sendo muito grande", diz.
Para reduzir o problema, na concepção do juiz, muita coisa precisaria ser mudada na Constituição e nas leis. "O ordenamento jurídico teria que ser mais claro, limitando a interpretação. Para isso, as novas propostas devem ser bem elaboradas, para que não crie essa dualidade, se é inconstitucional ou não. Além disso, é importante investir na educação e na teoria dos precedentes judiciais".