Inspiração

Filha de pescador é nomeada reitora no Maranhão

A primeira reitora eleita da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul), Luciléa Ferreira Lopes Gonçalves, 58 anos, enfrentou muitos desafios para chegar ao posto mais alto de uma instituição de ensino superior. Sua trajetória é vista como uma verdadeira saga.

Jáder Rezende
postado em 03/04/2022 06:00 / atualizado em 03/04/2022 06:00
Recém-empossada, a nova dirigente da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul), Luciléa Gonçalves, amplia o acesso de estudantes à instituição e promove a criação de novos cursos  -  (crédito: Editoria de Arte/Reprodução)
Recém-empossada, a nova dirigente da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul), Luciléa Gonçalves, amplia o acesso de estudantes à instituição e promove a criação de novos cursos - (crédito: Editoria de Arte/Reprodução)

Filha de pescador com ensino fundamental incompleto, a primeira reitora eleita da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul), Luciléa Ferreira Lopes Gonçalves, 58 anos, quer revolucionar a educação universitária naquela região, ampliando o acesso de estudantes à entidade, com a criação de novos cursos. Luciléa enfrentou muitos desafios para chegar ao topo de uma instituição de ensino superior. Sua trajetória é vista como uma verdadeira saga.


Nascida na comunidade da Ilha de Peru, no município de Cururupu, litoral central do Maranhão, Luciléa é a quarta filha entre sete irmãos e foi professora do ensino médio por 25 anos. Na infância, fazia o trajeto para a escola pelos rios da região. Enfrentava temporais e o mar revolto, mas sempre se manteve firme em suas obrigações. Até os 10 anos, viveu com a família na ilha, grande produtora de camarão e pescados. O pai, Antônio Clemente, vendia camarão no Pará e, nessas viagens, percebeu que novas realidades poderiam se abrir aos filhos. Fez o impossível, sempre com o sustento da pesca, para matricular todos na escola. Hoje, todos têm diploma de curso superior.

“Desde pequena estudamos muito literatura e tabuada. Sou do tempo da palmatória, mas nunca levei nenhuma”, lembra ela. “Para meu pai, era importante a gente se dedicar aos estudos, principalmente para fazer as contas das vendas do pescado, definir a divisão do lucro.” Seu Antônio faleceu em agosto de 2014 e a mãe, Laura, de 86 anos, mudou-se para São Luís no mesmo ano, após ficar viúva.

Em 1990, Luciléa se transferiu para Imperatriz, para cursar licenciatura plena em geografia. Como tinha uma filha pequena, precisava conciliar os estudos com o trabalho. Passou, então, a dividir seu tempo entre cuidar da família e dar aulas no Serviço Social da Indústria (Sesi), na educação básica, e na universidade. “Foi um processo difícil, um momento de desterritorialização. Nunca foi meu objetivo ir para o interior. O Maranhão é muito São Luíz. O interior é bastante subestimado”, diz.

Em 1992, decidida a ampliar seus horizontes, com a especialização em geografia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e, em 1997, mestrado em educação ambiental pelo Instituto Pedagógico Latinoamericano y Caribeño (Iplac/Cuba). O mestrado em geografia veio em 2008, na Universidade Federal do Paraná. Luciléa é professora da Universidade Estadual do Maranhão (Uema) desde 1990. A Uemasul foi fundada em 2016, após ser desmembrada da Uema.

Guinada

Natural de uma colônia pesqueira, Luciléa Gonçalves enfrentou desafios na infância e adolescência e agora quer revolucionar o ensino no interior do Maranhão
Natural de uma colônia pesqueira, Luciléa Gonçalves enfrentou desafios na infância e adolescência e agora quer revolucionar o ensino no interior do Maranhão (foto: ASCOM UEMASUL)

Luciléa afirma nunca ter tido a pretensão de dirigir uma instituição de ensino superior. “Um dia, numa reunião, me indicaram para ser candidata. Primeiro, fui escolhida para ser vice, mas, depois, fui convencida a encabeçar a chapa por minha querida amiga, agora vice-reitora, Lílian Castelo Branco. Tudo por minha história de vida. E a vitória veio com folga. Fiquei emocionada, até corei”, conta. A posse viralizou depois que seu filho, João Paulo, orgulhoso, postou a foto da posse em uma rede social.

Com menos de um mês no cargo, Luciléa arregaçou as mangas e partiu para a ação. Criou a pró-reitoria de extensão, elaborou um novo estatuto de educação, e está em andamento o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) visando o recredenciamento da instituição junto ao Conselho Estadual de Educação, criou a pró-reitoria para assuntos estudantis e a primeira editora da instituição, além de determinar a reorganização do museu e Centro de Pesquisa em Arqueologia e História Timbira, criado em 2015 como parte do projeto de extensão do Núcleo de Estudos Indígenas, que abrange também a etnologia e a cultura popular do sertão maranhense. Além disso, implantou o curso de direito. “A universidade abriga hoje 2.564 alunos, mas vamos aumentar a oferta de vagas, com base na avaliação regional”, afirma.

Luciléa espera que sua história motive encoraje muitas meninas e mulheres Brasil afora. “Minha história é a mesma de muitas meninas e mulheres. Não são todas que se animam a estudar. É imprescindível ter confiança, carinho e respeito dos companheiros. Por meio da educação podemos quebrar o ciclo de pobreza, despertar o cuidado familiar. Não devemos nos prender por dinheiro, e sim investir no que for possível para o filho estudar”, ensina.

Reconhecimento

O governador Flávio Dino compareceu à cerimônia de posse
O governador Flávio Dino compareceu à cerimônia de posse (foto: ASCOM UEMASUL)

Para a presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), Lia Quintana, a eleição de Luciléa Gonçalves representa uma vitória de todas as mulheres. “Todas sabemos que o mundo acadêmico manteve, por muitos anos, as portas fechadas às mulheres”, diz, lembrando que, no ensino superior, somente no final do século XX uma mulher ingressou em uma universidade, mas foi apenas na década de 60 que elas tiveram realmente acesso ao ensino superior, nos grandes centros urbanos

“A história dela revela a desigualdade de oportunidades, não só econômicas, mas geográficas, uma distorção que devemos reconhecer e modificar. No Brasil, as mulheres são maioria no índice de formação no ensino superior. Portanto, é importante que a professora, agora reitora Luciléa Gonçalves, seja reconhecida e valorizada. É uma chefe de família que transformou suas oportunidades em conquistas e conduz sua trajetória ao cargo de reitora em uma universidade do Nordeste, levando consigo suas origens e priorizando a educação. Aos poucos, evidenciamos exemplos de mulheres ocupando espaços relevantes, como ocorreu recentemente com a eleição da Professora Helena Nader, da Unifesp, para a Academia Brasileira de Ciências (ABC), que terá, pela primeira vez, em 105 anos, uma mulher para a presidência”, frisa Lia Quintana, que também rompeu barreiras, como a primeira mulher a presidir o Crub, após 55 anos de sua fundação.

Realidade regional

Lia Quintana observa que o ensino deve chegar ao interior e às capitais para o desenvolvimento regional e formação de pensadores e tomadores de decisão, acoplados à realidade regional e, principalmente, com uma formação focada em desenvolver e inovar, priorizando e potencializando as características locais. “É evidente que os desafios de acentuada tecnologia em escala mundial precisam ser considerados em cada território no Brasil para gerar uma política educacional equitativa. O Vale do Silício, por exemplo, originou-se onde tínhamos plantadores de batatas.”

“No Brasil, desenvolvem-se novas tecnologias em todos os lugares, muitas vezes sem internet, sem recursos adequados, mas produzindo inovação e tecnologia tendo como base as vocações e capacidades locais”, afirma, concluindo que o mais importante nesse contexto é sempre dialogar, valorizar e respeitar a realidade local, assim como garantir incentivos que resultem em tecnologias que colaborem com a superação dos problemas e desigualdades locais. “O papel da universidade também é esse, produzir conhecimento que resulte em melhoria na vida das pessoas e seus territórios.”

Luciléa e sua mãe, Laura, na comunidade da Ilha de Peru, em Cururupu
Luciléa e sua mãe, Laura, na comunidade da Ilha de Peru, em Cururupu (foto: Arquivo Pessoal)

Assim como Luciléa Gonçalves, Lia Quintana é dona de uma trajetória de trabalho, ocupação de espaço, conquista e liderança. Ela pondera que o fato de ser a primeira mulher a presidir o Crub é uma conquista que vem entrelaçada a um caminho de dedicação acadêmica e entusiasmo com a política educacional. “De forma paralela, sempre fui dedicada à família, que é a base da minha história, ao passo que estruturei meu trabalho entre engenheira, docência e gestora”, diz.

TRÊS PERGUNTAS PARA

Luciléa Gonçalves, reitora

O que mais marcou a sua infância?

Lembro nitidamente do trabalho do meu pai e da minha mãe com camarão, da escola, das festas da padroeira. Ainda é muito forte a imagem da pescaria de camarão, o torrar, o cozinhar com bastante sal, colocá-los no sol sob as miaçabas. Do meu pai levando a produção para vender no Pará. Da minha mãe sempre junto dele, tecendo as puçás, ajudando no que podia fazer nas pescarias. Do cuidado dela com a gente para nos oferecer sempre um alimento muito digno e natural. Não havia padaria, então, ela sempre fazia muito bolo de tapioca e um pão de ló perfeito, sempre naquela preocupação de oferecer algo a mais. Lembro que nossa comunidade se iniciou muito autônoma, com todos se organizando. Construíram posto de saúde, escolas, igreja. Meus pais sempre organizavam as festas da padroeira, Nossa Senhora da Conceição, os leilões, as quermesses, a coroações da santa. Eu sempre me vestia de anjinho para a coroação. Estudei na ditadura militar e me lembro das fardas, bem típicas da época. Também das aulas multisséries, na mesma sala. Eram duas escolas, uma para a primeira e a segunda e a outra, para a terceira e quarta séries. Nossa professora, a dona Carminha, era normalista, típica da região. Era encantador o esforço que ela fazia para nos alfabetizar bem, dentro dessa realidade, com salas mistas

Quais foram os principais desafios que você enfrentou no acesso à educação?

O maior desafio, sempre, foi a necessidade de sair do meu lugar, viajar o tempo todo para estudar. Então, indo para Cururupu em barcos a vela, a remo, as lanchas a motor vieram apenas um tempo depois. Ter que sair de casa muito criança, ainda aos 11 anos de idade, foi gerando saudades que a gente tem da família. E o compromisso de sempre fazer melhor, de representar as comunidades. Lembro que quando cheguei em Cururupu, eles admiravam eu ser sabedora da tabuada. Lá no interior, até a quarta série primaria, a gente estudava no bolo. Então, quem errava levava o bolo, mas nunca levei. Sempre estudava a tabuada para não apanhar. Mas, na quinta série, já no município, o conhecimento da tabuada me favoreceu nos estudos, além da questão da leitura. O grande desafio foi romper com a falta de comunicação, com a saudade, por estar sempre viajando, sempre em perigo com os grandes mares, as marés fortes.

Como a senhora avalia a importância de uma educação pública de qualidade e o incentivo aos jovens?

A educação pública de qualidade é fundamental para assegurar a formação dos menos favorecidos deste país. É dever de gestores a responsabilidade de capacitar bons professores por meio da formação plena, para que nossos futuros docentes tenham essa compreensão de, quando forem lecionar em escolas públicas, ter o entendimento, a compreensão da responsabilidade de qualificar uma pessoa. A escola pública é o lugar daquele que não tem condições para cursar uma escola regular, principalmente no ensino fundamental e médio. Nas universidades, observamos hoje uma inversão. Nas públicas, existem pessoas com condições socioeconômica elevada, enquanto, nas particulares, para alguns cursos, as classes média e média baixa têm acesso. Mas a universidade pública é o espaço do cidadão, cabe a ela assegurar com qualidade, com acolhimento e responsabilidade esse grupo desfavorecido, dar a ele toda a condição de estudo para que haja uma ruptura do ciclo da pobreza. Se não há um ensino de qualidade por meio da escola pública, o ciclo da pobreza é favorecido, não se rompe. É necessário que a escola pública seja forte e acessível, principalmente para os menos favorecidos

 

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