Eu, Estudante

COLUNA

Pretos no topo: também falamos sobre violência nas escolas

A coluna Pretos no topo entrevista Jana Almeida professora da Secretaria da Educação do DF e uma disseminadora da cultura de paz nas escolas

O risco de favorecer a disseminação do coronavírus e o consequente aumento dos casos de covid-19 dominaram boa parte das discussões sobre a retomada das aulas presenciais. A volta às escolas, porém, evidenciou outra crise: a da violência entre estudantes. O que se espalhou pelo país foram notícias de agressões entre adolescentes, tanto em instituições públicas quanto em privadas. Trata-se de uma "tragédia anunciada", avalia Jana Almeida (foto), professora da Secretaria da Educação do DF e uma disseminadora da cultura de paz nas escolas.

Segundo ela, há dinâmicas nas instituições de ensino que, muito antes da pandemia, já favoreciam a violência. Junta-se a isso a falta da adoção de um protocolo de retorno que considerasse também a saúde mental de alunos, professores e demais funcionários. "Essa reclusão também gerou violência em casa (...) Então, o jovem volta para a escola com muitas dessas violências reprimidas, prontas para serem canalizadas para outras pessoas", avalia a especialista em neuropsicopedagogia. Em entrevista à coluna, Jana avalia a crise e aponta possíveis soluções.

Há a hipótese de que os episódios recentes de violência nas escolas estejam relacionados ao retorno às aulas após as restrições em função da pandemia. Como a senhora avalia isso?

A pandemia está relacionada a esse fenômeno, mas em partes. Nenhum de nós voltou da pandemia da mesma forma que estava antes dela. E sabíamos que uma das ondas dessa crise sanitária seria a da saúde mental. As pessoas tiveram muitas perdas, perderam familiares, emprego, renda, moradia, estabilidade emocional. Não tem como retomarmos a vida da mesma maneira que deixamos quando tivemos que ficar reclusos. Muitos hábitos foram transformados. E, para as pessoas que já tinham algum tipo de tendência, ou uma animosidade que não estava controlada, o ambiente de reclusão pode ter deixado isso aflorado. Essa reclusão também gerou violência em casa, tivemos, por exemplo, vários casos de mulheres convivendo com os agressores sem poder sair de casa, apanhando, sendo exploradas. Então, o jovem volta para a escola com muitas dessas violências reprimidas, prontas para serem canalizadas para outras pessoas. Acredito, sim, que, em partes, a pandemia pode ter afetado a convivência dos jovens. Mas sempre pontuo que a escola é um microespaço social. Tudo o que tem na sociedade existe na escola em menor escala. Para além da pandemia, as escolas sofrem com uma ausência de políticas públicas de cultura de paz e de uma percepção sobre a importância de uma educação integral. Não é a educação em período integral, mas a educação que consegue desenvolver o sujeito em sua integralidade. Ela não aborda apenas os aspectos cognitivos. Há a possibilidade de a pessoa se desenvolver socialmente e de as suas questões psicológicas serem tratadas.

A escola, então, era um ambiente que favorecia a violência mesmo antes da pandemia?

Era uma tragédia anunciada. Já tínhamos a situação de uma escola que, antes, estava em um movimento de violência. Estamos vivendo no país, um período de animosidade muito grande. Em partes, em função do presidente, que estimula a violência, quer todo mundo armado, quer a polarização. Acabou juntando tudo. Já sabíamos que o governo precisaria de um plano com normas de biossaúde, mas também de um protocolo biopsicossocial. Voltamos às aulas com aquele debate sobre cobrar ou não vacina, usar ou não máscara, mas a escola também precisa entender quem é aquele aluno que está voltando. Ele perdeu o pai, perdeu a mãe? Onde está morando? Quais as violências que sofreu? Quais são as queixas e as perspectivas desse estudante, que é um indivíduo? Além disso, houve uma perda de aprendizagem, que é externalizada pelo estudante de alguma forma. Um trabalho de recuperação de aprendizagens poderia evitar que essa externalização se transformasse em energia de violência no outro. O aluno impactado pela defasagem pode protestar, desrespeitar o professor. Estamos vendo esses episódios de violência filmada, mas existem outros tipos de violência dentro da escola.

Quais a senhora destaca?

O próprio racismo, que é velado, o professor que está perdendo o domínio das turmas. Tive uma professora da Ceilândia que me ligou desesperada, em uma sexta-feira, à noite, dizendo que tinha sido ameaçada por um estudante e me pedindo ajuda. Me comprometi a ajudar, mas, na segunda-feira, ela entrou com um atestado médico. Ou seja, sofreu uma violência, adoeceu e precisou se tratar. A fome é outro tipo de violência, que também aumentou na pandemia e não é mostrada, porque não se filma, não dá ibope. Tem esse aspecto também. Hoje, quando as pessoas acham que algo vai dar muito like, elas começam a filmar, compartilhar. E isso vai banalizando as violências, vai virando uma modinha entre os adolescentes, que ficam mais corajosos em suas atitudes.

E como romper esses ciclos? Como incluir a cultura de paz nas escolas?

O correto é que ela seja trabalhada desde o ingresso do estudante na educação infantil. Nós que somos freirianos apostamos nessa perspectiva, nas escolas parques de Anísio Teixeira, a gente sabe da importância dessa formação. Mas estamos em uma precariedade tão grande de recursos, de infraestrutura, que vira aquela coisa: quando falta, você compra o básico. Acabam entendendo que o básico é português, matemática, é trabalhar a forma tradicional com os estudantes para garantir a disciplina, trabalhando com os meninos enfileirados, com a prova que vale nota, na cultura da ameaça. A escola deixa de ser um ambiente socioemocionalmente afetivo para ser um local de repressão, favorável à violência. Escuto de alunos que, na escola, eles têm vontade de fazer um buraco e entrar dentro. Ainda é um ensino que não emancipa, que não liberta e que causa sofrimento. Acredito que a única perspectiva para avançarmos nas aprendizagens é combater as violências por meio da educação integral como uma política pública. A escola não vai fazer sozinha. O governo precisa colocar a mão, fazer parcerias. Mas as soluções que têm sido apresentadas vão em sentido contrário, no da militarização, por exemplo.

Conseguimos fazer um recorte desse fenômeno considerando questões como raça, gênero, os locais onde os jovens estão estudando?

Eu coordenei o Projeto Educação para Paz em 2019, aqui no Distrito Federal, e ele tinha um cunho pedagógico e de ações de segurança pública. Uma das coisas que tivemos mais dificuldade foi termos dados para fazer a política. Instituímos um grupo de trabalho que foi à Secretaria de Educação, fizemos parceria com a Unesco, com a UnB, mas, na hora que fomos sentar para fazer a política, o planejamento a partir dos dados, não havia dados. As informações que conseguimos foram cedidas pela polícia militar através de um questionário que eles enviaram para as escolas, mas foi respondido por cerca da metade delas. Inclusive, uma das metas da política era tornar o questionário obrigatório. Outra coisa é que nem todas as ocorrências são comunicadas para a polícia, ficam no caderninho da direção da escola. Esses dados precisam entrar em um sistema, como existe o sistema de matrículas, não para punir o aluno, porque a ação da escola tem que ser educativa, mas para ter o registro daquela violência. Essas informações são necessárias para fazermos políticas públicas. Então, fazer um recorte por raça, gênero e região é impossível porque, como especialista, preciso desses dados científicos. Se não, posso cair em um achismo, estar enganada. Uma escola em uma área com maiores índices de violência não é necessariamente uma escola mais violenta. Existe uma miscelânea de aspectos que precisam ser estudados.

Mas de que forma os não especialistas percebem esses episódios? Nesse caso, pode haver um olhar diferenciado dependendo de onde acontece a violência?

Isso existe. Aqui no DF, por exemplo, é comum que jovens de um local sejam levados, em massa, para estudar em regiões diferentes das que residem. Uma vez, antes da pandemia, fui mediar um conflito no Lago Norte, uma briga, nos moldes dessas que estão sendo televisionadas agora, envolvendo nove meninas. A diretora queria transferi-las. Aí, ela disse para uma delas: 'Você mora em um lugar tão feio, tão pobre, tem a oportunidade de estudar em um lugar tão maravilhoso e não aproveita'. E a menina respondeu: 'Quem disse que eu queria vir para cá? Eu gostaria de estar estudando na minha quebrada'. A violência de tirar os corpos dos seus espaços para fazer com que eles façam parte de outra realidade também é um fator que gera violência. E essa dinâmica existe muito aqui. O Guará, por exemplo, recebe os estudantes da Estrutural. Eles sofrem uma discriminação por virem de outros espaços, até porque nenhuma comunidade é igual a outra, e a forma de lidar com isso pode ser gerando mais violência.

Além da educação integral, quais outros mecanismos podem favorecer a cultura de paz nas escolas?

Produzir paz não quer dizer que não haja violência. Precisamos trabalhar para a acessibilidade socioemocional nas escolas. A escola não tem briga, grito, xingamento, mas ela é saudável para os estudantes? Ela combate o bullying, o racismo, a violência de gênero? Ela discute questões de empoderamento feminino? Dá espaço para o estudante ser o que ele quer ser ou militariza? A cultura de paz está dentro dessa perspectiva maior, de acessibilidade socioemocional. Nossas escolas são do século 18 ainda, e os estudantes não gostam delas, não se sentem confortáveis nelas. Precisamos lutar para transformar isso.

Quais outras práticas podem ajudar nesse sentido?

Defendo também as práticas integrativas de saúde. Elas são instituídas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e, ainda assim, no projeto de 2019, tivemos muita dificuldade em aplicá-las aqui no DF. Ela viraria uma lei distrital, mas deputados da bancada evangélica disseram que tinha a ver com religião. Interrompemos um grupo de ação porque um deles dizia que ioga e meditação eram coisas do demônio. Mas fomos elogiados na OMS (Organização Mundial da Saúde) quando apresentamos esse projeto. Tínhamos implementado em 10 escolas e queríamos estender, mas fomos interrompidos. A ideia era, inclusive, fazer com que a comunidade que mora próxima à escola participasse. Por exemplo, um morador que soubesse meditação ensinaria os alunos, claro que com uma curadoria, mas não fomos adiante. Parece que a nova gestão tem a intenção de retomar, espero que dê certo. O importante é focar em soluções. Então, para a cultura de paz, penso em educação integral, práticas integrativas de saúde e a capacitação dos professores. Eles precisam ser formados para uma cultura de paz e para a medição de conflitos. Todo mundo da escola pode aprender os protocolos para mediar conflitos e agir, inclusive, para que eles nem surjam.

A escola não tem briga, grito, xingamento, mas ela é saudável para os estudantes? Ela combate o bullying, o racismo, a violência de gênero? Dá espaço para o estudante ser o que ele quer ser ou militariza? A cultura de paz está dentro dessa perspectiva maior, de acessibilidade socioemocional"

Participe

Chance de avançar

O prazo é curto, mas a oportunidade pode ter consequências grandiosas. Terminam hoje as inscrições no Programa Avança, Preta!, criado pelo Fundo Gabara para capacitar e dar suporte financeiro a mulheres negras que se dedicam a iniciativas de geração de renda. São 11 vagas, e a possibilidade de participar de cursos de capacitação técnica ao longo de um mês e meio. Ao fim do treinamento, as selecionadas receberão um aporte de R$ 1.250 a R$ 5 mil. Entre os temas a serem abordados nos cursos, estão planejamento e gestão de negócios, organização financeira, autocuidado e saúde emocional da mulher negra. As candidatas também precisam ter ao menos 18 anos e estarem envolvidas em iniciativas com, no mínimo, um ano de existência e que tenham redes sociais ou site. Inscrições através do formulário disponibilizado no instagram @fundoagbara ou no site www.fundoagbara.org.br.

Governo

Descaso com a igualdade racial

Um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) deixa evidente que a promoção da igualdade racial não desperta o interesse do governo atual. Tendo como base dados do Balanço do Orçamento Geral da União de 2021, o estudo mostra que, no ano passado, houve uma redução no investimento de ações para essa área em relação ao anterior. A execução financeira da promoção da igualdade racial, medida alocada no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, diminuiu mais de oito vezes entre os dois anos — de R$ 17,6 milhões para R$ 3,3 milhões — e, ainda assim, todo o valor não foi usado. "Apesar do valor extremamente baixo, o governo gastou apenas R$ 2 milhões, 66% do total, sendo metade de restos a pagar de anos anteriores", indica o relatório do Inesc. Esses recursos se destinam a apoiar estados e municípios para o enfrentamento ao racismo e para o funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR).

Centenária

Que saudade!

A última quinta-feira foi para celebrar o privilégio da existência de Dona Ivone Lara. Se estivesse viva, a primeira dama do samba completaria 100 anos. Morta aos 97 anos, ela deixou um legado tanto para as artes quanto para a saúde mental.Também enfermeira, Ivone Lara esteve ao lado de Nise da Silveira na construção de abordagens mais humanizadas para pacientes psiquiátricos. Usava intervenções com música no hospital em que trabalhava, já na década de 1940, quando pouco se falava sobre musicoterapia. Nos palcos, também foi revolucionária. Gravou o primeiro disco aos 56 anos de idade, depois que o marido ciumento morreu. Sonho meu, o sucesso de estreia, foi seguido por uma série de canções inesquecíveis — muitas de autoria própria. Ivone era instrumentista, cantora, compositora, dona de um lindo sorriso negro e de um jeito nobre de viver. Que saudade!

Marco André Pinto/Divulgação - Dona Ivone Lara

Recortes de cor

57,2%

dos municípios brasileiros não elegeram sequer uma vereadora negra (preta e parda) para as suas câmaras municipais nas últimas eleições, em 2020. O número cai para 15,7% quando se considera os candidatos do sexo masculino, revela pesquisa conduzida pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (NJRD/FGV Direito SP), em parceria com a Coalizão Negra por Direito.

83%

dos africanos não receberam a primeira dose da vacina contra o novo coronavírus, segundo a Organização Mundial de Saúde. Um dos países mais populosos do continente também é um dos mais afetados pela desigualdade vacinal: na Nigéria (foto), apenas 3% dos mais de 206 milhões de habitantes receberam duas doses do imunizante.

KOLA SULAIMON - Dr. Ngong Cyprian (L), the first Nigerian to receive the first dose of the Oxford/AstraZeneca vaccine at the National Hospital Abuja, Nigeria on March 5, 2021. The Nigerian Government begins its roll-out of nearly 4 million of the Oxford/AstraZeneca vaccine in Nigeria / AFP / Kola Sulaimon