Superação

Discriminação e agressão recorrentes no câmpus

Encaminhamento para entrevista de emprego amplia esperança de morador de rua por dias melhores

Correio Braziliense
postado em 01/05/2022 00:01

Há três meses matriculado no curso de enfermagem da unidade Belenzinho da Anhanguera, em São Paulo, o morador em situação de rua Diego Augusto Pereira vem sofrendo, constantemente, discriminação por parte de colegas e professores. Segundo ele, pelo menos três alunas do mesmo curso deixaram de frequentar as aulas depois que souberam da sua condição. Além disso, afirma, passou a ser solenemente ignorado por professores durante as aulas. O pagamento das mensalidades é outro drama vivido pelo calouro, que foi proibido pela direção de vender balas, seu único meio de sustento, no campus. "Sou discriminado até hoje. Nem me chamam pelo nome", lamenta.

Entre os comentários preconceituosos que já ouviu, Diego lembra o que partiu de uma roda de estudantes, depois da aula. "Quando passei por aquele grupo, um deles disse, em voz alta, que passou a vida estudando para chegar na faculdade e ser obrigado a conviver com pessoas como essa", diz, lembrando ainda que, em outra ocasião, uma mulher parou o carro, o chamou e, quando se aproximou, levou uma cusparada no rosto.

Entre os professores, as manifestações de aversão também marcaram o estudante. "Quando tenho alguma dúvida e levanto a mão para perguntar, eles não me ouvem, parece que nem estou na sala de aula, que não existo." Até mesmo a venda de balas dentro da faculdade foi censurada pela direção. "No início oferecia, mas dificilmente alguém me ajudava. Até que a coordenadoria me proibiu, argumentando que essa prática é antiética."

Ainda assim, Diego confessa que está decidido a ir até o fim, concluir o curso e partir para a prática. "Estou estudando bactérias, sei que algumas evaporam, no ar e até entram em nossa corrente sanguínea. Já sei diagnosticar manchas no corpo e aprendi que não posso assinar nenhum tipo de documento sem saber a origem do problema. Sei até fazer receituário", conta, revelando que sua meta é levar essas experiências para as ruas. "Quero ajudar outras pessoas mais na frente. Estou disposto a sofrer, lutar e conseguir meu diploma. Por vários meios, a reportagem tentou contato com o diretor da unidade Belenzinho da Anhanguera, Marcos César Garcia, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

Otimismo

Diego confessa que a ajuda do padre Júlio Lancellotti tem se tornado fundamental para que seu otimismo não esmoreça. Além de ter feito sua inscrição para o processo seletivo do projeto Bompar, que diariamente atende mais de 10 mil pessoas por dia, entre crianças, adolescentes, idosos e pessoas em situação de rua, Lancellotti escreveu uma carta de recomendação para a entidade e ajudou Diego a recuperar todos os documentos perdidos nas ruas. "Diego fará as entrevistas necessárias, participará das dinâmicas de grupo e terá condições de acertar o caminho da vida dele", diz o padre.

Diego conta ainda que está apreensivo com o pagamento da mensalidade do curso, que custa R$ 538,42 e, com um dia de atraso, sobre para R$ 769,17. "Consegui pagar o primeiro mês, mas agora está mais difícil, a dívida está virando uma bola de neve", diz. Para ajudar Diego a pagar o que deve e mais alguns meses da faculdade, até que ele consiga se estabilizar com seu novo emprego, Lancellotti postou em sua página do Instagram um resumo da história do estudante e a chave pix para doações (projetocaminhosrua@gmail.com).

"Para nós, a pessoa é mais importante que a história. O mais importante foi Diego chegar e conseguirmos manter comunicação, interação e ter respostas. É como montar um mosaico, um quebra cabeça, com o fazer um a palavra cruzada. Primeiro, respondemos as mais fáceis. Depois, partimos para as mais difíceis", ensina.

Para o sacerdote, o aumento vertiginoso da população de rua em todo o país pode resultar em uma convulsão social. "Em dois anos, a população de rua aumentou 31% somente em São Paulo, mais do que o crescimento demográfico do país. E este é um problema nacional. Já há registro de saques em supermercados. Chegará num ponto em que as pessoas não vão aguentar mais", alerta.

Lancelotti frisa que as autoridades estão caminhando cada vez mais na contramão da busca por solução para esse grave problema. "Muitas prefeituras fazem campanha para não dar esmola. Em Camboriú, instituíram multa de R$ 750. Observamos que, com o aumento da miséria, aumentam também a intolerância e a aporofobia", constata.

O termo aporofobia vem sendo cada vez mais popularizado com as denúncias feitas pelo padre. Nas imagens postadas em suas redes sociais, ele destaca elementos da chamada "arquitetura antipobres", que impedem a permanência ou passagem de pessoas em situação de rua em espaços públicos.

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