Aprendizagem

Auditores fiscais do trabalho são contra a MP de Bolsonaro

Criado para promover a inclusão de jovens no mercado de trabalho, o Programa Jovem Aprendiz pode ser radicalmente alterado

Arthur Vieira*
postado em 29/05/2022 12:00 / atualizado em 29/05/2022 12:00
Adolescentes durante expediente. Proposta do Executivo beneficiará empresas que não cumprirem a cota de aprendizagem prevista em lei -  (crédito: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Adolescentes durante expediente. Proposta do Executivo beneficiará empresas que não cumprirem a cota de aprendizagem prevista em lei - (crédito: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

O presidente da República, Jair Bolsonaro, propôs uma Medida Provisória que institui o programa “Emprega + Mulheres e Jovens”, para facilitar o ingresso no mercado de trabalho. No entanto, entre as medidas previstas está a instituição do “Projeto Nacional de Incentivo à Contratação de Aprendizes”, cujas ações beneficiariam financeiramente empresas que não cumpram a cota de aprendizagem prevista em lei.

De acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o percentual de funcionários aprendizes em um estabelecimento deve girar em torno de 5% a 15% do percentual de funcionários, isso considerando somente os que exercem funções que demandem ensino fundamental ou médio. As medidas propostas no texto, porém, flexibilizam as sanções para as empresas que não cumpram este percentual mínimo, desde que se adequem ao projeto.

Segundo o artigo 26° da MP, as entidades que se juntarem ao projeto não serão mais autuadas por não fiscalizar o cumprimento da cota de aprendizagem durante o período de regularização. Além disso, a multa pelo descumprimento do percentual não só ficará suspensa durante o período, como terá o valor reduzido em 50%, caso a empresa tenha sido multada antes da adesão. O texto estabelece, ainda, um procedimento especial para regularização da cota de aprendizagem profissional dos setores que apresentem baixa taxa de contratação de aprendizes.

Para Luís Miguel medida pode ser muito prejudicial aos jovens aprendizes
Para Luís Miguel medida pode ser muito prejudicial aos jovens aprendizes (foto: Arquivo pessoal)

Para o jovem aprendiz Luís Miguel Moreira, de 17 anos, a medida pode ser muito prejudicial aos jovens aprendizes. Luís é estudante de escola pública no DF e entrou no programa no final de 2020, quando tinha 15 anos. Ele achou no Jovem Aprendiz uma forma não só de começar a ter uma renda própria, como de ter experiência no mercado de trabalho desde cedo.

O jovem conta que nem mesmo ficou sabendo da discussão da MP até então, e que a falta de conhecimento dela por boa parte dos jovens aprendizes pode ser perigosa. “Acho que prejudica não só os poucos jovens aprendizes que são contemplados com o programa, mas também dificulta para os que não estão empregados”, disse.

Para ele, as empresas poderão não passar autoridade para os funcionários com o provável cenário de desorganização. Ele ainda afirma que, se entrar em vigor, esta medida pode prejudicar bastante a vida dos jovens que dependem do programa para sustentar suas famílias, fazendo com que busquem outros meios ilegais para conseguir os recursos.

Reação da Auditoria

A MP causou revolta entre os auditores fiscais do trabalho. Os coordenadores de aprendizagem profissional das auditorias-fiscais de cada um dos estados e do DF assinaram e publicaram uma carta de entrega coletiva dos cargos, explicando que o projeto “terá, por efeito imediato, a desobrigação de contratar aprendizes, colocando em risco as milhares de vagas de aprendizagem atualmente preenchidas em todo país”. Na carta, os servidores alegaram que havia a expectativa de mais de 100 mil contratações de aprendizes nos próximos quatro meses, mas que isso pode não ocorrer caso as empresas venham a aderir ao projeto proposto.

A ex-coordenadora de aprendizagem na Auditoria-Fiscal de Pernambuco e uma das signatárias da carta, Simone Brasil, afirma que não foi fácil tomar esta decisão. “Foi um processo sofrido. Alguns dos coordenadores atuavam há décadas na função, mas não podemos compactuar com estas medidas”, disse.

Para ela, a proposta é uma propaganda enganosa para o mercado de trabalho, uma vez que as medidas mais abrem espaço para as empresas contratarem menos aprendizes do que incentivam a aprendizagem de fato. “A lei começa com uma mentira, diz que vai incentivar a contratação dos jovens aprendizes. Mas anular o trabalho dos auditores e a diminuição das multas fará com que muitos não tenham chances de trabalhar. Nossa atuação foi praticamente anulada”, lamenta.

Reação em Cadeia

Simone observa ainda que a alteração de medidas de artigos da CLT propostas no artigo 28 da MP prejudicará bastante o processo de aprendizagem no país. Uma das mudanças que mais preocupa, segundo ela, refere-se ao parágrafo 3° do artigo 428, que prolonga o contrato dos aprendizes de três para até cinco anos para contratados com idade entre 14 e 15 anos. Ela firma que essa alteração diminuirá a rotatividade dos empregados e fará com que as empresas contratem menos jovens e, ainda sim, cumprir a cota estabelecida, mas diminuindo bastante as chances de conseguir um emprego nesta faixa etária.

Além disso, ela se preocupa com as mudanças no parágrafo 5° do artigo 429, que faria com que jovens em situação de vulnerabilidade fossem contabilizados em dobro nas cotas. Dessa forma, avalia, as empresas passarão a contar com um contingente menor para atingir o percentual estabelecido. “O empresariado não vê a aprendizagem como um investimento, mas como um custo. É preciso esclarecer que não é possível ter a mão de obra qualificada que eles tanto desejam sem um processo de aprendizagem profissional qualificado”, afirma.

O presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Diego Bezerra Alves, acredita que a redução do número de vagas de jovem aprendiz gerará consequências que vão além do âmbito financeiro para os jovens, pois pode incentivar o trabalho informal e até mesmo a criminalidade. “O Brasil é um país desigual, onde muitas famílias dependem dos jovens para sobreviver. A falta de oportunidade de emprego os leva a buscar outras formas de sustento, muitas vezes por meios ilegais ou não regularizados”, diz.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) sobre trabalho de crianças e adolescentes de 2019 apontam que quase 1,37 milhão de jovens entre 14 e 17 anos estão em situação de trabalho infantil de forma ilegal no Brasil, o que representa cerca de 78% de toda a população menor de 18 anos que se encontra nesta situação.

Para Priscila Caneparo, advogada especialista em Direitos Humanos, programas relacionados ao Jovem Aprendiz são medidas socioeducativas para os jovens, também por ser uma forma de o Estado cumprir com sua responsabilidade, a de proporcionar um futuro para os mesmos. Ela observa que o abandono do governo em comunidades menos favorecidas facilita o ingresso dos jovens na criminalidade, pelo simples fato dessa possibilidade oferecer maior perspectiva de futuro e sustento para suas famílias.

Tendo em vista a grande ocorrência dessas situações, Priscila Caneparo avalia que o crime, representado principalmente pelo narcotráfico nestas comunidades, acaba realizando o papel que o Estado deveria cumprir: “Isso é uma falha do Estado. O narcotráfico acaba fazendo para os jovens o que o país deveria fazer, dar a eles um futuro e garantir a sua segurança. O Brasil privilegia muito mais direitos e liberdades políticas do que assegura direitos sociais e econômicos, sem condições para que as pessoas exerçam, de fato, esta liberdade”.

.
. (foto: Diana Raeder/Esp. CB/D.A Press)

Diego Alves estima que essas consequências, muito provavelmente, não são algo acidental, mas sim um planejamento para facilitar a vida dos empresários do país. Ele diz se preocupar bastante com os jovens nesta situação, e afirma que boa parte dos empresários nunca esteve disposta a cumprir a cota de aprendizagem. Pondera ainda que a medida só vai auxiliá-los a contratar menos aprendizes para cumprir as novas determinações da lei.

Ele observa, também, que a falta de aprendizagem pode reduzir ainda mais a qualificação da mão de obra e fazer com que o país e a população desenvolva uma dependência maior da mão de obra barata, sem que as pessoas possam ter a possibilidade de conseguir evoluir nos estudos ou em uma carreira. “A gente vai acabar passando por um ciclo vicioso, de pessoas que vão viver sempre submetidas a ser mão de obra barata, por necessidade e falta de condições, sem poder avançar nos estudos”, prevê.

Acordo se sobrepõe à lei?

A MP tramita na Câmara junto com a discussão do Tema 1.046 no Supremo Tribunal Federal (STF), que trata da possibilidade de acordos pré-estabelecidos entre patrões e empregados se sobreporem às leis trabalhistas. Caso o STF veja validade nisso, o processo para o avanço da Reforma Trabalhista e a própria tramitação da MP poderão ser agilizadas.

Segundo o advogado trabalhista Ronaldo Tolentino, a questão dos acordos e convenções se sobreporem à lei pode até ser válida, desde que trate de questões de relação entre patrão e empregado, e não de direitos básicos garantidos na Constituição Federal. “As convenções refletem uma dinâmica social das relações de trabalho que são melhor implementadas dessa forma do que em um projeto de lei”, diz.

Para Tolentino, a questão das cotas de aprendizagem e de funcionários PcD (pessoas com deficiência) não é algo que pode ser pré-estabelecido internamente, uma vez que mexe diretamente com programas que beneficiam e asseguram condições dignas de sustento para pessoas menos favorecidas socialmente. Ele explica que mesmo que haja funções que aprendizes ou pessoas com deficiência não possam exercer, o que poderia até ser discutido no tema com relação à uma reformulação das cotas, os programas devem ser estimulados e ajustados à realidade de cada empresa ou indústria para que não haja uma defasagem que prejudique esses segmentos de trabalhadores socialmente e também financeiramente.

O advogado ainda afirma que as medidas propostas na MP 1.116 não deveriam ser implementadas como provisória, uma vez que elas são de caráter mais urgente nos trâmites, e que uma mudança deste tipo não caberia a uma medida normativa. “Para que possam ser feitas mudanças neste âmbito, seria melhor partir para um projeto de lei, para que pudesse ser discutido e consultado também com os agentes sociais que serão atingidos pelas medidas, ou seja, os empresários e os trabalhadores”, conclui. *Estagiário sob a supervisão de Jáder Rezende

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação