Chutando o balde

Abrindo mão do emprego para garantir melhor qualidade de vida

As demissões voluntárias estão aumentando cada vez mais no Brasil. Busca por melhor qualidade de vida e realização pessoal são os principais motivos que impulsionam essa nova onda

Jáder Rezende
postado em 07/08/2022 06:00 / atualizado em 07/08/2022 06:00
O Brasil vem experimentando um fenômeno em expansão no planeta: cada vez mais trabalhadores insatisfeitos, com o trabalho e com o modo de vida que levam, pedem demissão para buscar realização pessoal em outras atividades. -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Pre/ Arquivo Pessoal)
O Brasil vem experimentando um fenômeno em expansão no planeta: cada vez mais trabalhadores insatisfeitos, com o trabalho e com o modo de vida que levam, pedem demissão para buscar realização pessoal em outras atividades. - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Pre/ Arquivo Pessoal)

Abrir mão do trabalho estável em busca de melhor qualidade de vida deixou de ser um movimento pontual para se tornar uma tendência mundial. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apesar dos mais de 10 milhões de desempregados no país, um terço das solicitações de desligamento em empresas ocorrem de forma voluntária.

De acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), a onda de demissões no Brasil vem crescendo a cada mês. Em janeiro, exatos 554.191 trabalhadores renunciaram ao salário e garantias contratuais previstas em lei. No mês seguinte esse número subiu para 560 mil e, em março, foram cerca de 600 mil colaboradores que decidiram "chutar o balde".

Ainda de acordo com o Caged, em março deste ano foram registrados 1,8 milhão de desligamentos no país, sendo 603 mil voluntários, perfazendo 33,2% do total. Foi o mais expressivo número de demissões requeridas em um único mês, desde janeiro de 2020, quando quase 370 mil pedidos de desligamento foram efetivados. Já no recorde anterior, em fevereiro, foram contabilizadas 560.272 demissões voluntárias entre 1.684.636, o que equivale, igualmente, a 33,2%.

Márcio Monson, especialista em RH, avalia que o mercado está se adequando e buscando equilíbrio: "Cada vez m
Márcio Monson, especialista em RH, avalia que o mercado está se adequando e buscando equilíbrio: "Cada vez m (foto: Selecty/Divulgação)

O executivo Márcio Monson, fundador e CEO da Selecty, empresa curitibana de tecnologia para recrutamento e seleção, observa que as pessoas, em sua maioria, estão encontrando no abrir mão do emprego e tentativa de novas experiências um caminho para buscar satisfação e felicidade. Outros fatores também são considerados, como doença ou perda na família e a necessidade de acompanhar o crescimento dos filhos.

Mas o principal motivo para essa avalanche de pedidos de demissão, afirma Monson, foi a pandemia. "O longo período de isolamento imposto pela covid-19 levou à reflexões mais profundas, por exemplo, que a rotina diária de trabalho não permite pagar boletos. Em suma, as pessoas passaram a ressignificar a relação com o trabalho", afirma. "Esse período foi crucial para as pessoas repensarem situações como o carro ou a bicicleta parados na garagem e a possibilidade de um trabalho que garanta equilíbrio pessoal e profissional.

Com 15 anos de contato próximo com a área de RH, Monson avalia, ainda, que essa onda verificada na Europa, Estados Unidos, China e Índia, também já é realidade no Brasil. E alerta que as organizações precisam estar preparadas, identificando como tornar as vagas que oferecem não só atraentes do ponto de vista da empregabilidade, mas da satisfação que proporcionam ao profissional.

"São fatores importantes, como o respeito dispensado pela chefia e a garantia de uma jornada que garanta uma vida mais tranquila e equilibrada", afirma, ponderando que a ordem é investir na remodelação do mercado de trabalho, acompanhando as mudanças culturais e os novos aspectos comportamentais da sociedade.

"Historicamente, o mercado foca muito na produtividade e na entrega em detrimento das relações. Hoje, as empresas estão se enquadrando, sobretudo as com mão de obra escassa, como as de tecnologia da informação. Cada vez mais há oferta de benefícios, bonificações, tudo visando melhores condições de trabalho, humanizar os ambientes corporativos. O mercado está se adequando, buscando um equilíbrio", diz Monson, analisando que as grandes empresas estão liderando essa tendência.

Patrícia Paniquart: risco e busca por novos caminhos
Patrícia Paniquart: risco e busca por novos caminhos (foto: LHH Brasil/Divulgação)

A gerente de Operações de Transição De Carreira LHH Brasi, Patrícia Paniquar, avalia que, havendo baixa tolerância ao ambiente de trabalho, exigências impostas, assim como funções exercidas, deve-se fazer uma pausa para avaliação profunda. "Dependendo do nível de estresse, há os que decidem arriscar, buscar outros caminhos, privilegiar a saúde, sobretudo mental", diz.

Porém, segundo ela, esse movimento é menos observado nas camadas menos favorecidas. "Pessoas empreendedoras, com carreira acadêmica, geralmente têm um plano B mais concreto, diferentemente das que não têm fôlego financeiro", diz. Paniquar observa, também, que, em grande escala, observa-se nas organizações pessoas comentando sobre o quão estão sobrecarregadas, no limite em relação ao trabalho. Daí a necessidade de buscar uma nova saída.

"Depois do que passamos durante a pandemia, as pessoas pensam nessa pausa, não querem voltar para o mesmo modelo. Querem repensar sua relação com o trabalho, a entrega à própria organização. Não é um 'pra mim chega', mas fazer de forma diferente", diz.

O processo tem sido tão marcante, segundo ela, que as empresas estão lançando mão de gestores específicos para lidar com esse fenômeno. "Reter talento e manter um time forte, priorizando a saúde dos funcionários, exige um olhar mais cuidadoso", afirma. Dessa forma, avalia, o colaborador tem maior poder de escolha, assim como autonomia e clareza sobre o que quer.

Processo implica em vontade de mudar, de ser diferente. E muitas empresas estão comprando essa ideia" Gustavo Costa, sócio-fundador da Unique Group
Processo implica em vontade de mudar, de ser diferente. E muitas empresas estão comprando essa ideia" Gustavo Costa, sócio-fundador da Unique Group (foto: Unique Group/Divulgação)

O sócio-fundador da Unique Group, consultoria de recursos humanos especializada na contratação de executivos, Gustavo Costa é mais um a considerar que essa ressignificação de postura no mercado de trabalho encontrou maior impulso durante a pandemia, quando as pessoas tiveram mais acesso a informações sobre qualidade de vida e saúde mental. "Percebemos essa saída voluntária também no Brasil, seja para empreender ou mesmo mudar de área", diz.

A adequação de empresas a essa tendência, segundo ele, é verificada na ampliação da oferta de benefícios mais robustos, a maioria com foco na saúde mental. "Trata-se de um processo que prosseguirá por algum tempo. A nova geração Z, por exemplo, já vem para o mercado olhando para esse nicho, muito atenta a esse propósito. Sabe o que quer para a sua vida. E isso desafia as empresas a diversificar, pensar fora da caixa", diz.

Ele prevê que, a curto prazo, haverá uma acomodação desse processo, com adoção de melhores estratégias entre as empresas para manter novas lideranças em seus quadros, como possibilidade de trabalho remoto em tempo integral. "Isso implica em mudança de alternativas, vontade de mudar, de ser diferente. E muitas empresas estão comprando essa ideia", diz.

A grande virada

Adriana Campos abriu mão do trabalho formal para se dedicar ao artesanato -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

A consultora empresarial Adriana Campos Freire, 58 anos, se enquadra no crescente rol dos que decidiram "chutar o pau da barraca" e partir para uma vida mais livre, leve e solta. Ela conta que firmou um contrato de dois anos com uma rede de móveis corporativos, mas chegou à conclusão, 18 meses depois, de que não valia a pena desprender tanto tempo e energia em uma ocupação nada motivadora.

"Já não via mais sentido naquilo. Não sei se envelheci e minha paciência acabou ou se realmente insisti nessa área sem muito interesse", diz Adriana, que acumula experiência de pelo menos 15 nos na área. "Já voltei para essa seara sem muito interesse. Tentei, mas esse capitalismo e todo esforço que a função exige não me representam. Entendi que, para insistir nessa ideia, é preciso muita coragem ou falta de juízo", completa.

No emprego, Adriana recebia salário de R$ 10 mil, o suficiente para manter a casa e suas necessidades. Mãe de dois filhos, de 25 e 28 anos, ainda dispensa atenção financeira ao mais velho. "Não que eu seja aquele tipo de mãezona super protetora. Parto do princípio de que temos que fazer nossa parte quando os filhos ainda são crianças", diz

Questionada sobre sua escolha na vida profissional, conta que ingressou no segmento por acaso, mas sempre foi muito questionadora. "No final das contas, fazendo uma análise crítica, nos endividamos para justificar o emprego ou seguimos criando estratégias para bater metas. Mas tudo isso é muito pouco para sustentar ilusões", filosofa.

Antes de encarar o mercado, Adriana mantinha em sua antiga casa, no Lago Sul, uma oficina onde fazia peças de artesanato reaproveitando materiais recicláveis. Veio a pandemia e com ela a crise. Se viu, então, obrigada a se mudar para um apartamento, mas não abriu mão de suas produções. "Minha ambição sempre foi ser artista plástica", revela.

Hoje, Adriana voltou a produzir peças decorativas e comercializa seu trabalho com o apoio de um grupo de arquitetos. "Como todo louco, me sinto liberta, feliz da vida. Não gosto de ser crítica fervorosa do capitalismo, não há como fugir dele, mas há, sim, um equilíbrio a se buscar. A independência tem um preço alto, mas vale muito a pena", ensina.

Rompendo Fronteiras

Igor Coutinho durante intercâmbio nos Estados Unidos
Igor Coutinho durante intercâmbio nos Estados Unidos (foto: Arquivo pessoal)

O vendedor Igor Coutinho, 22, é outro exemplo de quem optou por buscar outras possibilidades que não fossem atreladas à bater ponto diariamente e se submeter a longas jornadas de trabalho. Ele trabalhava em uma oficina de peças automotivas, com salário fixo de R$ 1.500. Segundo ele, foram sete longos meses de labuta, até que, num belo dia, resolveu mudar e fazer o que sempre quis: morar e trabalhar fora do Brasil. "Meu salário não dava pra nada. Então, comecei a planejar uma viagem. Busquei programas de intercâmbio e fui para os Estados Unidos", conta.

Na terra do tio Sam, começou a trabalhar em dois empregos e passou a ganhar dez vezes mais em relação ao que recebia no Brasil. "Viajei por vários estados, conheci lugares incríveis. Lá a gente experimenta outra vida. É muito mais fácil para sobreviver. Para se ter uma ideia, com 15 dias de trabalho comprei um iPhone último modelo e ainda sobrou bastante", diz, frisando que a carga horária nos serviços que arranjou nos Estados Unidos era infinitamente inferior a que encarava no Brasil.

De volta e com o dinheiro que juntou por lá, decidiu dar andamento a um antigo projeto, a Plataforma do Brownie, que havia iniciado há um no e meio. Agora, adotou a semana de quatro dias e chega a ganhar mais de R$ 3 mil por mês. "Minha mente está bem mais aberta com a experiência que tive fora . Hoje em dia, por mais oportunidades que me ofereçam, não volto a nenhum emprego fichado", afirma o agora empreendedor, que pretende se especializar em programação web e tentar a sorte em uma multinacional fora do Brasil.

Da medicina para a arqueologia

Carlos Vinicius durante plantão em um hospital de Brasília -  (crédito: Arquivo pessoal)
crédito: Arquivo pessoal

O médico Carlos Vinicius Palmeira Martins, 47 anos, abriu mão da rotina de hospitais para realizar um sonho acalentado desde a infância. Depois de 15 anos atuando como pediatra, pediu demissão do emprego e mudou-se para a Itália para estudar arqueologia. Também servidor da Secretaria de Saúde do GDF, licenciou-se para realizar essa espécie de período sabático, mas com o propósito de retornar a Brasília para reassumir o cargo.

"Trabalhava 80 horas por semana, em dois empregos. Tive oportunidade de morar em Roma e não pensei duas vezes. No início, estranhei um pouco sair de um batidão e ter tempo livre para observar coisas novas. Levou um tempo para decidir ir para outra área, mas agora sinto que estou vivendo uma experiência única", diz.

Carlos Vinicius em um sítio arqueológico da Itália, durante estágio da Sapienza Università di Roma
Carlos Vinicius em um sítio arqueológico da Itália, durante estágio da Sapienza Università di Roma (foto: Arquivo pessoal)

Segundo ele, apenas o fato de viver em uma cidade considerada berço da cultura e da civilização ocidental ajudou muito na escolha da nova profissão. "Não é por acaso que Roma é chamada Cidade Eterna. Há muito o que aprender por aqui, e arqueologia já era algo que trazia dentro de mim desde criança", diz.

Carlos Vinicius em outro ponto turístico da Cidade Eterna
Carlos Vinicius em outro ponto turístico da Cidade Eterna (foto: Arquivo pessoal)

A paixão pela medicina sempre existiu. E sendo filho irmão e cunhado de médicos, a influencia familiar reforçou a vocação. Na arqueologia, ele encontrou uma nova visão de mundo. Tanto que pretende se aprofundar na nova área, partindo para mestrado, doutorado e o que mais for possível. "Foi a grande oportunidade que encontrei para dar asas a um dos meus sonhos", diz.

Ele conta que chegou a Roma apenas com noções básicas de italiano. Se matriculou em um curso no Centro Linguístico Dante Alighieri e, assim que passou a dominar o idioma, ingressou na Sapienza Università di Roma, uma das mais antigas instituições de ensino do mundo, que oferece curso gratuito na área de arqueologia.

O futuro arqueólogo, estudando reminiscências do passado
O futuro arqueólogo, estudando reminiscências do passado (foto: Arquivo pessoal)

"Pensei em fazer botânica, paisagismo, fitoterapia, que tem muito a ver com a área médica, e também gastronomia, uma vez que exercer medicina por aqui é um processo bem mais complicado, envolve muita burocracia. No final, decidi seguir na arqueologia", revela.

Prestes a se formar, Martins encara aulas práticas, como parte dos seis estágios obrigatórios do curso. Já participou de estudos em sítios arqueológicos importantes, como no Monte Palatino, cenário da origem da civilização romana, e se prepara para, em setembro, desbravar Pyrgi, em Cerveteri, originada a 600 anos antes de Cristo e considerado um dos lugares mais interessantes do mundo etrusco. "É um curso maravilhoso, que está me abrindo possibilidades de novas e fascinantes descobertas", afirma.

No Pantheon, a edificação mais preservada da Roma antiga
No Pantheon, a edificação mais preservada da Roma antiga (foto: Arquivo pessoal)

Martins conta, ainda, que quando revelou a parentes e amigos que estava decidido a fazer algo totalmente diferente em sua vida despertou as mais diversas reações, sobretudo de espanto, mas sempre respondia que o importante era dar vasão ao sonho represado desde a infância. "Até mesmo uma professora de arqueologia e história da arte ficou surpresa ao saber que eu sou médico pediatra. Tanto que insistiu que eu fizesse um estágio em uma necrópole só de crianças", lembra.

Outra meta traçada, segundo ele, é viajar para o Egito para ver de perto vestígios e escavações arqueológicas que serviram e ainda servem de lição para muitos estudiosos. Para o novo arqueólogo brasileiro, o que importa, afinal, é não abrir mão dos sonhos e da vontade de aprender sempre mais. "Tudo depende da gente administrar o tempo para alcançar objetivos profissionais e também pessoais. Enfim, fazer aquilo que realmente gosta", ensina.

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