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Também falamos sobre: Amamentação

Carmen Souza
postado em 14/08/2022 06:00 / atualizado em 14/08/2022 06:00
 (crédito:  REUTERS)
(crédito: REUTERS)

No primeiro ano da pandemia, em busca de informações, fora do Brasil, que a ajudassem a melhorar as suas práticas clínicas, a pediatra Tiacuã Fazendeiro e a psicóloga Fernanda Lopes descobriram um movimento forte nos Estados Unidos de estímulo à amamentação entre as mulheres negras. “Por que não no Brasil?”, se perguntaram. E a dupla, em agosto de 2020, lançou a primeira semana de apoio à amamentação negra.

A ideia, explica Tiacuã, é qualificar profissionais de saúde para prestar assistência qualificada e orientar a população em geral sobre a importância da amamentação e suas especificidades. “ Dizem, por exemplo, que aleitamento é tudo igual. Aí, eu gosto de começar trazendo para o biológico. Por exemplo, as lesões de pele devido à amamentação vão se manifestar nas pessoas negras de maneira diferente. Se você não se atentar a isso, vai fazer um diagnóstico errôneo”, ilustra a pediatra.

Em entrevista à coluna, Tiacuã, que se prepara para a terceira edição da semana, entre os dias 25 a 31 de agosto, também enfatiza as questões coletivas e históricas ligadas a esses processos. “Aumentar a taxa de amamentação depende (...) da sociedade, depende de uma cultura”, defende. Confira os principais trechos da conversa.

Estudos mostram um avanço nas taxas de amamentação no Brasil, mas não atingimos as taxas estabelecidas pelas Nações Unidas. Como você avalia esses dados?

Tenho críticas a eles. Pegam dados do Ministério da Saúde, de uma pesquisa domiciliar, e, depois, para evoluir esses dados, pegam uma pesquisa do Enam (Encontro Nacional de Aleitamento Materno), que tem uma metodologia que não é abrangente. Então, da maneira como foram coletados, esses dados não refletem a realidade. Mas, mesmo achando que eles estão superestimados, eles são horrorosos. Fico preocupada com a questão da culpabilização da mulher, de dizer que aumentar a taxa de amamentação depende só dela. Na verdade, depende da sociedade, depende de uma cultura. Não é só colocar a boca no peito. Se fosse, já estaria resolvido. A mulher que amamenta precisa ter uma seguridade financeira. Como ela vai estar em casa e dar conta de amamentar um bebê de maneira exclusiva até os 6 meses, como é recomendado pela OMS, se ela não tem segurança de que, quando voltar a trabalhar, vai se manter no emprego? Isso se ela tiver emprego registrado, porque a gente sabe que boa parte dos trabalhadores informais é composta por mulheres negras. Dizem que ela pode ordenhar e deixar o leite. Mas esse tempo de amamentar e ordenhar está tirando o tempo dela trabalhar. Seria uma possibilidade para ela? Se a gente não tiver uma garantia de acesso a direitos para todas as pessoas, não tem como a taxa de mulheres que amamentam aumentar de fato. Precisamos, enquanto sociedade, garantir os direitos para que todas possam amamentar.

É um cenário desafiador e, provavelmente, dificultado nos últimos anos pela pandemia da covid-19. Isso aconteceu? De que forma?

Sim, em vários aspectos. Por exemplo, a gente sabe que a violência doméstica aumentou. Não aumentou só contra a mulher, também aumentou contra as crianças. Então, a díade envolvida na amamentação foi diretamente impactada. Houve também um grande empobrecimento da população, a ponto de a gente voltar a ter fome no país. Como você amamenta com fome? Tem um dado muito grave sobre o aumento das mortes maternas. O pré-natal acabou sendo atingido, faltando consultas para uma grande população de mulheres, porque, inclusive, fecharam os atendimentos eletivos e ficaram só as emergências. E isso aumentou muito a mortalidade materna, impactando na amamentação. Quem é que vai amamentar, cuidar da criança que nasceu depois que a mãe dela morreu? Teve muita gente que foi demitida ou, com a flexibilização trabalhista, com a desculpa da pandemia, foi demitida e contratada como pessoa jurídica, perdendo os direitos trabalhistas, incluindo os ligados à maternidade. Essas são coisas do ponto de vista coletivo. Do ponto de vista individual, penso naquele dizer africano que diz que é necessário uma aldeia inteira para educar uma criança. E, de fato, é necessário. A solidão materna é algo destruidor da psiquê. Então, essa mulher que ficou isolada em casa, que, às vezes, não teve contato com a mãe, a irmã, com alguém que pudesse ir lá dar uma apoio, desde lavar uma louça até o apoio da presença, de compartilhar histórias, essa é uma mulher que se sentiu extremamente sozinha e fragilizada. A gente está em um mundo que questiona a potência do corpo dessas mulheres o tempo inteiro, que as faz se sentirem incapazes, insuficientes. Esse sofrimento das que ficaram isoladas das suas redes de apoio trouxe um impacto muito grande no desmame. Trouxe essa coisa de não sei se sou capaz, não sei se essa criança está alimentada; então, vou inserir outras coisas para dar conta. Inserir um bico artificial, a mamadeira, o leite artificial, e isso coloca a amamentação em risco.

Como fazemos um recorte racial desses processos?

Tem a questão da pobreza. Entre as pessoas pobres, a maior parte é negra. Se a gente pega as famílias monoparentais, que só tem um adulto com as crianças, a maior parte é negra. Dentre essas famílias, quem chega mais rápido à linha da pobreza são as mulheres negras. Quando a gente vai olhar salário, as pessoas negras ganham menos. Então, como falei, as questões sociais vão impactar diretamente na amamentação. Mas tem uma questão histórica com as mulheres negras também. Mesmo após o fim legal da escravidão, elas continuaram sendo usadas como amas-de-leite. Então, a amamentação no Brasil ganhou essa coisa de ser algo que não é adequado para as mulheres de classes sociais mais altas, virou algo de pobre, não muito limpo, que precisa ser feito escondido. São aquelas imagens marcantes de uma mulher negra amamentando uma criança branca, e a sua criança negra raquítica chorando ao lado. Essa história traz um peso para as mulheres até hoje.

Como isso chega hoje na clínica?

Neste momento, eu estou no serviço privado, mas trabalhei bastante no SUS. Na minha prática, essa história vem de duas maneiras. Uma é: eu tenho dinheiro para comprar fórmula e não preciso amamentar essa criança. A outra é: quero ressignificar a minha amamentação porque eu posso amamentar a minha criança e não preciso amamentar as das outras. E as duas formas são muito pesadas. A mãe que não amamenta e a criança que não é amamentada estão deixando de ter benefícios, correndo riscos. Já a mãe que amamenta faz com tanto peso que, quando ela tem o desejo de limitar a demanda ou de desmamar, ela mesmo se invalida. Vem algo assim: se tenho direito de amamentar o meu filho, vou amamentar para sempre. E isso também é muito difícil.

De que forma a atuação dos profissionais de saúde interfere nessas questões?

Se a gente for pensar, a violência obstétrica está relacionada a piores desfechos na amamentação, segundo mostram os estudos. E as mulheres negras sofrem muito mais esse tipo violência. Há, ainda, a questão de a assistência à saúde ser menos acessível às pessoas negras, tanto pela questão de renda quanto pela questão da falta de formação dos profissionais. Então, por exemplo, esse entender de que a mulher negra é mais forte faz com que ela receba menos anestesia pós-parto. Eu não tenho dados estatísticos para falar sobre ela receber menos cuidados para a dor mamária, mas posso inferir, já que não foi pesquisado. Posso inferir que elas têm mais dificuldade em encontrar ajuda quando sentem dor. Eu tenho um caso que acompanhei no SUS de uma mulher negra que teve que amputar o mamilo. Imagine a dor que ela estava passando ao amamentar, e os profissionais dizendo que era assim mesmo, que ela ia se acostumar. Fico imaginando se isso aconteceria com uma mulher branca. É um caso individual, mas conhecendo a nossa sociedade, a gente consegue extrapolar para o todo.


Como a semana de apoio à amamentação negra surge diante dessas suas experiências profissionais?

Desde a minha graduação, percebo que não há esse recorte racial, não tem dados, estudos, estatísticas. Além disso, quando você olha os materiais para estudar, não existem pessoas não brancas representadas. Isso vinha enquanto incômodo para mim, assim como o fato de existirem poucas profissionais negras. Indo buscar estudos sobre a amamaentação com desfechos diferentes para nossas demandas clínicas, eu e a psicóloga Fernanda Lopes descobrimos que existia nos Estados Unidos a campanha Black Breastfeeding Week (semana do aleitamento materno negro) e nos pergutamos por que que no Brasil, que tem 54% da populaçao negra, não tinha algo do tipo. A gente resolveu começar uma na pandemia, no primeiro semestre de 2020 A ideia era fazer seminários, rodas de conversas, mas fomos obrigadas a ficar só no on-line. No fim das contas, isso acabou tendo um alcance muito grande. Nas duas primeiras edições, copiamos o tema das americanas. E neste ano, a gente traz essa coisa de olhar para o passado, trabalhar no presente para promover um futuro melhor. Essa ideia de ninguém fica para trás.

Há abertura entre os profissionais para isso?

Às vezes, as pessoas questionam o que isso vai impactar. Dizem, por exemplo, que aleitamento é tudo igual. Aí, eu gosto de começar trazendo para o biológico. Por exemplo, as lesões de pele devido à amamentação vão se manifestar nas pessoas negras de maneira diferente. Se você não se atentar a isso, vai fazer um diagnóstico errôneo. O cuidado com um bebê que tem o cabelo crespo é diferente. Se não tiver um cuidado adequado, pode causar lesão de pele. A gente gosta de convidar as pessoas a olharem, primeiro, à sua volta. Então, com quem você trabalha? Essas pessoas são brancas, negras, indígenas? Quem são as pessoas que você assiste? Quando você vai produzir conteúdo educativo, quais são as pessoas que são representadas? Porque, muitas vezes, quem está na assistência privada diz que não atende famílias negras. Será que não atende ou nem repara nisso? Se tem 54% da população negra no país e, na minha assistência, elas não estão chegando, o que está acontecendo? Aí, é olhar as diferenças para promover equidade, não para promover mais diferenças. Vendo que tem diferenças, preciso estudar, me formar e proporcionar uma assistência mais adequada.

FRASE

“Não é só colocar a boca no peito. Se fosse, já estaria resolvido. (...) Precisamos, enquanto sociedade, garantir os direitos para que todas possam amamentar”

“Se tem 54% da população negra no país e, na minha assistência, elas não estão chegando, o que está acontecendo? Aí, é olhar as diferenças para promover equidade, não para promover mais diferenças”

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Confira a programação da semana de apoio à amamentação negra no Brasil no @amamentacaonegra 

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