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Para encarar desafios do mercado, startups se reinventam

Cenário de ajuste de contas deve permanecer nos próximos anos e medidas para conter prejuízos envolvem redução de pessoal, investimentos mais tímidos e pausa em projetos de expansão

Mariana Andrade*
postado em 18/09/2022 06:00 / atualizado em 18/09/2022 06:00
 (crédito: Arquivo Pessoal/Reprodução)
(crédito: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Cada vez mais as empresas precisam se reinventar e encontrar soluções para encarar os novos desafios impostos pelas mudanças no mercado. Fatores como inflação, juros altos e crise econômica, conflitos — exemplo da guerra na Ucrânia —, pandemia do coronavírus e o recente surto de monkeypox no planeta obrigam as startups a encontrar métodos para sobreviver ao novo cenário.

No primeiro semestre, as startups brasileiras captaram US$ 2,92 bilhões em 327 transações, 44% menos em relação ao mesmo período do ano anterior, de acordo com novo relatório da plataforma de inovação Distrito.

Felipe Matos: capacitações ancoradas em falsa perspectiva de crescimento
Felipe Matos: capacitações ancoradas em falsa perspectiva de crescimento (foto: Divulgação)

O presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), Felipe Matos, analisa que grande parte das demissões se enquadram em uma resposta a mudança de cenário que, segundo ele, estão concentradas principalmente nas startups maiores, chamadas unicórnios, ou próximas desse status mais maduro que haviam promovido grandes capacitações de investimentos no passado.

"Essas capacitações, em geral, estavam ancoradas numa perspectiva de crescimento acelerado que não vai acontecer, seja porque a gente está passando por uma realidade econômica diferente, seja porque não vai ter capital disponível para essas rodadas de crescimento acelerado no futuro da mesma forma", afirma Matos.

Para o presidente da Abstartups, elas precisavam se adaptar ao cenário por meio de redução de custos e rever os planos de crescimento. Como a principal linha de uma empresa está ancorada em pessoas, Matos lamenta as demissões, porém entende que esse mecanismo funciona como uma contenção de gastos.

Maiko Pinheiro: após maré de otimismo, vem o pessimismo e a indecisão
Maiko Pinheiro: após maré de otimismo, vem o pessimismo e a indecisão (foto: Arquivo pessoal)

De acordo com Maiko Pinheiro, head de novos negócios na Templo Ventures, empresa que cria e conecta startups a corporações, a estratégia adotada pelas startups para "sobreviver" nesse período de mercado não-favorável foi reduzir o quadro de funcionários, além de mudar o timing dos investimentos, seguindo um calendário mais estratégico. "Existe uma resiliência e estabilidade por parte dessas empresas para conseguir trabalhar e se manter ativas no mercado. Aí que entra essa questão das demissões em massa. É uma forma dessas startups sobreviverem", afirma Maiko. "Captar novas rodas está mais difícil. Logo, a empresa precisa gerar resultados imediatos. Nesse momento, acontecem as grandes demissões", completa.

Contenção de prejuízos

Grandes unicórnios como Ebanx, Facily, Olist e QuintoAndar são exemplos de startups que adotaram a prática de "contenção de prejuízos". Porém, Maiko não acredita que o desemprego desses profissionais vai impactar negativamente o mercado de trabalho. Ele avalia que ainda existe uma propensão no mercado a uma alta demanda para essas posições. "Nem tudo está perdido. A boa notícia nesse processo é que o mercado carente de bons profissionais, com experiência em growth , [marketing de crescimento], volta a ter boas opções de contratação e mais empresas podem se preparar para crescer", conta.

Natália Bertussi: crises implicam análise do comportamento do cliente
Natália Bertussi: crises implicam análise do comportamento do cliente (foto: Felipe Costa/Divulgação)

"O mercado é cíclico. Normalmente, após uma maré de otimismo, vem o pessimismo e, logo após, momentos de indecisão. Estamos num momento de pessimismo, os valuations, [avaliação de empresas], antes robustos, que permitiam estratégias agressivas de crescimento, estão mais conscientes. Com isso, os tomadores de decisão estão ficando mais criteriosos dentro dos seus investimentos. A liquidez do mercado de venture capital está reduzida, o que faz com que se acenda diversas luzes amarelas e vermelhas em vários lugares", analisa Maiko.

A coordenadora nacional de startups do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Natália Bertussi, avalia que mudanças de cenários são importantes para o surgimento de novos modelos de negócios. "Independentemente do momento econômico, a startup precisa criar uma solução para um problema relevante e que tenha um público disposto a pagar por esta solução". Bertussi analisa que, em momentos de "crise" e instabilidade, é preciso analisar o comportamento do cliente, ou seja, se ele considera essencial pagar por esse investimento.

Amure Pinho: demissões como forma de acompanhar as mudanças do mercado
Amure Pinho: demissões como forma de acompanhar as mudanças do mercado (foto: Divulgação)

Segundo levantamento do Layoffs Brasil, site que cataloga e contabiliza as demissões em startups no país, só neste ano mais de 2 mil profissionais desse tipo de empresas foram demitidos. Para Amure Pinho, fundador do Investidores.vc, os cortes e demissões em massa não estabelecem uma crise no mercado. Ele acredita que essa movimentação nada mais é que uma tentativa das startups de se adaptar de forma acelerada para acompanhar as mudanças do mercado.

Já Bertussi enxerga o processo de demissões como um efeito colateral de contratações realizadas em momentos não adequados. "Os altos investimentos recebidos por startups no passado fizeram com que, muitas vezes, o recurso fosse aplicado contratando pessoas e aumentando equipes sem, necessariamente, ter uma base sólida para tal crescimento", analisa. Ainda segundo ela, esse setor foi influenciado pelo ambiente externo, a pandemia e a guerra entre Ucrânia e Rússia, contribuindo para uma revisão orçamentária e, consequente, demissão de colaboradores.

Pinho afirma que com menos dinheiro disponível no mercado, a palavra-chave para startups que estão começando nesse momento é "manter os pés no chão", focando, sobretudo, na busca por eficiência no capital gasto para manter a saúde do modelo de negócio e garantir perenidade.

"Os investimentos em startups ainda estão acontecendo mas, agora, assistimos a uma auto regulação no mercado de investimentos: investidores analisando com mais cautela os números, avaliando o valuation e garantindo aportes em modelos de negócios estruturados e mais sólidos", diz Pinho.

Adaptação de serviços

Passada a "fase de euforia" do modelo unicorniano, termo que se refere às startups que atingem uma avaliação de mercado (valuation) de pelo menos US$ 1 bilhão, Pinho recomenda analisar três cenários para enfrentar a "turbulência sem danos irreversíveis": ignorar o risco e buscar captação sem reduzir o ritmo de crescimento; adotada pelas startups que andam encabeçando as manchetes, é a desaceleração da queima de caixa, com políticas de layoff para tentar não morrer na praia; a última saída é encontrar caminhos para que a lucratividade da startup possibilite captações com menos risco — movimentação que exige mais suor para reverter o gasto desenfreado.

Empresas, startups e investidores mudaram a perspectiva na forma de analisar e cobrar resultados do capital utilizado, segundo Pinho. Ele afirma que existe uma tendência contra a urgência de resultados. Agora, o foco são os negócios estruturados, que adquiriram espaço no mercado e consolidaram o público-alvo, além de ter constância no crescimento.

"Nesse cenário, as startups que possuem mais controle contábil e ferramentas eficientes para garantir a saúde dos negócios fornecerão pontos de entrada mais atrativos para investidores. Startups em early stage [estágio inicial] estão mais atrativas, justamente porque estão em fase de crescimento, se estruturando e esperando um IPO só para os próximos anos", analisa Pinho.

É hora de investir?


No Brasil existem, atualmente, 12.700 startups, de acordo com a Associação Brasileira de Startups (Abstartups), contabilizando um crescimento de 27% em relação a 2018, quando o número era de 10 mil empresas. Um dos fatores que impulsionou esse crescimento foi o grande poder de ascensão, com aumento de ganhos sem inflar os custos.

Em junho de 2021 foi regulamentado o Marco Legal das Startups, documento que defende os interesses das empresas brasileiras do setor e seus investidores, proporcionando estímulo à criação e investimentos na área.

Matos afirma que toda crise traz também muitas oportunidades. Ele analisa os momentos de mercado de "baixa de capital disponível". "Isso significa que o valor das empresas tende a estar mais baixo e, com isso, cria-se uma boa oportunidade para quem quer investir", diz.

"Esse é um bom momento para investidores de startups apostarem nesse tipo de ideia, porque a gente está num momento de baixa, onde o preço de investimentos, provavelmente, vai estar mais atrativo em relação aos últimos anos, quando estávamos em um cenário de crescimento e alta indisponibilidade de capital", recomenda Matos.

O presidente da Abstartups analisa que a ideia de fundar e investir em empresas é uma excelente cartada. "Apenas o cenário de investimentos mudou. Agora, fundar uma startup continua sendo tão desafiador quanto antes, com o desafio adicional de convencer investidores sobre a viabilidade financeira das iniciativas. Então, os empreendedores vão precisar ficar atentos para os aspectos financeiros do seu projeto de startup mais cedo", analisa.

Ele avalia, ainda, que as grandes desvalorizações têm o potencial de mudar o status quo e, quem tem a capacidade de inovar e gerar valor para a sociedade nesse momento, pode sair na frente nessa corrida. "Nesse momento, precisamos apoiar os empreendedores que geram oportunidades na crise e nos ajudam a sair dela", diz Maiko.

Segundo o ele, a urgência de lucrar durante esses períodos de mercado não-favorável altera o mindset [mentalidade] do investidor, que passa a projetar cenários no qual a empresa consiga atingir um ponto de crescimento sem demandar muitos gastos e insumos. "As empresas precisam se organizar para atrair investimentos tanto no cenário favorável quanto no desfavorável", afirma. Por fim, ele enxerga um bom momento para investidores entrarem em startups.

Para Bertussi, o país atravessa um bom momento para investir em startups, desde que seja feita uma análise do modelo de negócio, dos empreendedores envolvidos, do potencial de mercado e dos números apresentados. Ela aconselha que investidores individuais busquem apoio de fundos ou de aceleradores com experiência no ramo.

Para Alessandro Machado, diretor da Cedro Capital, gestora de recursos independentes com sede em Brasília, neste cenário atual e com a elevação das taxas de juros em vários países, existe um fluxo de capital em busca de aplicações de menor risco, o que reduz o apetite de investidores em venture capital [capital de risco] e private equity [modalidade de investimento no qual uma gestora adquire parte de uma outra empresa em crescimento].

Machado acrescenta que uma startup precisa ter maior controle nos gastos e uma visão clara de quando irá superar o ponto de equilíbrio para obter lucro. "A austeridade financeira é a principal lição, mesmo nas empresas que estão em fase de expansão, queimando caixa para crescer", reforça.

Para os empreendedores que estão em dúvida onde investir, o diretor frisa que as oportunidades estão nos mais diferentes setores que implementam a inovação digital. "A aplicação das tecnologias de Inteligência Artificial deve ser o principal impulsionador das mudanças nos produtos e serviços que vamos observar nos próximos anos", conclui.

Serviços inovadores geram bons resultados

Guilherme Azevedo, cofundador da Alice, afirma que o turning point foi a pandemia
Guilherme Azevedo, cofundador da Alice, afirma que o turning point foi a pandemia (foto: Arquivo pessoal)

Uma das empresas que deu uma pausa e refez ou adaptou o plano de negócios devido ao cenário pandêmico e financeiro foi a gestora de saúde Alice, segunda maior operadora de saúde do Brasil, com 82 mil seguidores no Instagram.

Em março de 2020, às vésperas do lançamento da marca, a equipe decidiu cancelar a entrada da Alice no mercado para adaptar seus serviços às necessidades alertadas pela crise sanitária. Segundo o cofundador, Guilherme Azevedo, o período funcionou como turning point [ponto de virada] da gestora de saúde, que mesmo idealizada no virtual, investiu em medidas para fortalecer a tecnologia dos canais digitais. "Queríamos ajudar as pessoas a serem mais saudáveis e, também, estar presentes quando elas estivessem doentes", conta.

A estratégia adotada foi direcionar forças para ações e tarefas que impactam o rendimento da startup. "Entre dez demandas listadas, escolhemos focar em três, que somam cerca de 80% do nosso rendimento", afirma. "Esse exercício, de focar no que é mais importante para Alice, está ligado ao objetivo da empresa: tornar a população de São Paulo e, quem sabe no futuro, a do mundo, mais saudável", completa Azevedo.

O objetivo da empresa, segundo ele, é mudar a nomenclatura do que conhecemos por plano de saúde, "que existe para quando ficamos doentes". Por meio do aplicativo, são oferecidos serviços mais intimistas, com primeiro atendimento realizado por chat com algum profissional da saúde. Com acesso na palma da mão, o paciente sai da dependência e abraça a praticidade.

Entre os diferenciais do serviço, foram trabalhados o acesso ao histórico de resultados de exames, atendimentos por bate-papo ou presencialmente nos hospitais. "Esse conhecimento prévio ajuda tanto a equipe médica quanto quem está doente, porque não é necessário contar a mesma história e perder cerca de 10 a 15 minutos em uma consulta. Além disso, mantém esse contato mais humanizado entre ambas as partes", expõe.

Durante três meses, os criadores da Alice realizaram uma bateria de user experience [experiência do usuário] com mais de 200 convidados, entre eles familiares e amigos, para testarem as jornadas digitais dentro do aplicativo. "Esse processo comprovou a hipótese de que a saúde por meio virtual é possível, além de benéfica", afirma. No início de julho de 2020, lançaram a Alice no mercado.

O atual cenário para ele não é uma novidade. "Nos anos 2000 existiu um estouro da bolha, que permaneceu durante muito tempo. Presenciei diversas crises quando estava no ramo da economia, mas uma crise não pode ser ignorada", observa.

De acordo com o cofundador da Alice, no momento a empresa tem capital para enfrentar jornadas sem novos aportes, captação e busca por investidores. Ainda segundo ele, estar entre as startups cotadas para atingir o nível de unicórnio no final de 2022 — empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão —, provoca ansiedade e pressão para a equipe. "Mesmo com essa expectativa, nosso objetivo continua claro: oferecer bem-estar com facilidade para nossos colaboradores", acentua.

*Estagiária sob a supervisão de Ana Sá

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