Crise sanitária

Ação de formados precocemente pela UnB foi decisiva na pandemia

Recém-formados garantiram suporte valioso e decisivo ao SUS no estágio mais crítico da covid-19. Ferramentas como outorga antecipada de diploma permitiram a atuação de 1.171 estudantes dos últimos semestres letivos

Giulia Neves*
postado em 18/09/2022 06:00 / atualizado em 18/09/2022 06:00
Gustavo Romero, diretor da Faculdade de Medicína na UnB e pesquisador do Núcleo de Medicina Tropical -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Gustavo Romero, diretor da Faculdade de Medicína na UnB e pesquisador do Núcleo de Medicina Tropical - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Na linha de frente ou nos bastidores, recém-formados na área de saúde na Universidade de Brasília (UnB) ajudaram profissionais experientes a restaurar forças no ápice da pandemia. Para que essa força fosse viabilizada, no entanto, eles precisavam do diploma. No período em que medidas restritivas tomavam conta do país, a instituição graduou 1.171 estudantes.

Lúcio Henrique Lopes, 27 anos, figura entre os 50 alunos formados em medicina em agosto de 2021. Ele já estava no internato, estágio obrigatório do curso, quando os primeiros casos de covid surgiram na capital federal. "Ninguém estava preparado. Não houve uma organização, mesmo com a previsão da chegada do vírus. Nós, estudantes, chegamos a pensar se continuávamos ou não no internato, até percebermos que não haveria oferta de equipamento de proteção, os chamados EPIs, para todos. Temendo por seus parentes, o pessoal da minha turma decidiu parar. Logo em seguida, a própria universidade paralisou todos os cursos", lembra.

No entanto, ao contrário dos outros estágios obrigatórios da área da saúde, o internato não ficou parado por muito tempo. Cerca de três meses depois do início da pandemia, as atividades foram retomadas no Hospital Universitário de Brasília (HUB). A atuação de profissionais recém-formados durante o período crítico, como no caso de Lúcio, só foi possível devido aos esforços das faculdades da área da saúde da UnB.

De acordo com o diretor da Faculdade de Medicina, Gustavo Romero, a paralisação do estágio obrigatório foi determinada para adequar o internato ao novo cenário e garantir equipamentos de segurança a todos os internos, já que, durante o período, o HUB se tornou referência para o tratamento de pacientes com covid-19.

Lúcio Henrique Lopes, médico formado pela UnB em agosto de 2021
Lúcio Henrique Lopes, médico formado pela UnB em agosto de 2021 (foto: Studio fotografias)

"O internato envolve vários cenários, entre eles dois principais: o HUB e as UBS, Unidades Básicas de Saúde. Os estudantes alocados para os estágios são acolhidos e aprendem na prática. Mas no primeiro semestre de pandemia, todos os cenários foram afetados. O Hospital Universitário passou a ser referência para pacientes com covid. Isso exigiu realocação de leitos, reorganização das equipes e uma imediata necessidade de reduzir o trânsito de pessoas no hospital. Naquele momento, o HUB entendeu que os estudantes não deveriam participar e que deveríamos nos preparar para colocá-los em campo da maneira mais segura possível", diz Romero.

No estágio, Lúcio já havia passado pela especialidade cirúrgica e pretendia seguir para a área clínica, quando as atividades foram suspensas. Retornando ao internato, o então estudante atuou no diagnóstico de casos de covid, na atenção primária, mas não foi escalado para o tratamento da doença. Ele também passou pela área de ginecologia e obstetrícia, setor que funcionou durante o ápice da pandemia, mesmo com restrições. Após a graduação, passou a trabalhar em Goianésia (GO), sua cidade natal, em outubro de 2021. Ele conta que a decisão de retornar para a casa dos pais foi motivada pela possibilidade de conciliar os estudos com o trabalho com carga horária reduzida. Ainda em Goianésia, Lúcio atuou nos programas de orientação sobre o vírus e atendeu pacientes diagnosticados com sintomas leves.

Já a fisioterapeuta Amanda Vaz, 24, atuou de forma direta, durante o estágio, com pacientes que haviam sido infectados pelo vírus. Entre as sequelas tratadas, ela destaca cansaço físico, taquicardia e fraqueza generalizada. Amanda estudou no câmpus Ceilândia da UnB (FCE) durante cinco anos e se formou com outros 70 colegas, em 2021. Para ela, trabalhar durante a pandemia foi um grande desafio e também uma vivência oportuna. "A experiência enriqueceu muito nosso estágio, porque talvez sairíamos dele sem o conhecimento de um momento tão difícil. Vimos pessoas que já trabalhavam há anos em hospitais e nunca passaram por um período assim. De de repente, estavam lá, a esmo", relata.

Admiradora assumida da FCE, Amanda destaca o empenho da faculdade para garantir os EPI's aos estagiários. "A FCE não mediu esforços. Eles nos entregaram luvas, máscaras e capote cirúrgico. Em momento algum ficamos sem equipamentos de proteção", conta, lembrando que ela e outros colegas sofreram com a suspensão do estágio obrigatório. Isso aconteceu, segundo ela, porque as faculdades da área de saúde, junto ao Decanato de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional (DPO) da UnB, arrecadaram e forneceram os equipamentos para estudantes.

A um semestre de se formar, Amanda viu a pandemia paralisar sua formação acadêmica. Para o curso de fisioterapia, os estágios obrigatórios retornaram apenas no semestre seguinte. Ela afirma que o prejuízo só não foi maior porque já estava na fase final da graduação. "A minha sorte foi que eu já havia passado por matérias específicas e tive aulas práticas. Não sei como foi o aprendizado para as pessoas que precisaram ter aulas práticas de forma remota na pandemia. Se pra gente, que teve vivência de laboratório, já foi difícil quando entramos no mercado de trabalho, imagine pra eles", calcula.

Formação antecipada

Amanda Vaz, fisioterapeuta formada pelo câmpus Ceilândia da UnB
Amanda Vaz, fisioterapeuta formada pelo câmpus Ceilândia da UnB (foto: Matheus Gomes)

Amanda se formou em dezembro de 2021. Em maio de 2022, estava empregada. Ela afirma que se sente preparada para o mercado de trabalho, mas ainda busca o desenvolvimento como profissional. "Sempre existe uma lacuna que podemos preencher. Um dos meus objetivos é preencher esses espaços que a pandemia deixou", conta.

Em abril de 2020, o Ministério da Educação (MEC) lançou edital permitindo a formação antecipada para estudantes da área da saúde em instituições federais. A possibilidade de antecipar a colação de grau já existia em casos de excepcionalidade.

Com o documento publicado pelo MEC, a outorga antecipada, amparada pela Portaria nº 374, de 3 de abril de 2020, passou a autorizar a colação antecipada de alunos dos cursos de medicina, enfermagem, farmácia e fisioterapia, desde que completado 75% da carga horária prevista para os estágios obrigatórios, exclusivamente para atuação nas ações de combate à pandemia do novo coronavírus enquanto durasse a situação de emergência pública, encerrada em abril deste ano.

Diretor do câmpus UnB Ceilândia, João Paulo Chieregato Matheus
Diretor do câmpus UnB Ceilândia, João Paulo Chieregato Matheus (foto: Arquivo pessoal)

O diretor do câmpus UnB Ceilândia, João Paulo Chieregato Matheus, credita a autorização ao momento vivido. "O que a pandemia fez e a flexibilização trouxe foi a possibilidade de olhar para o aluno de maneira mais ampliada, entendendo o cenário de necessidade."

Ele explica, ainda, a condução do processo de avaliação desses estudantes. "A nossa faculdade começou, mesmo antes das flexibilizações do MEC, a avaliar esses alunos que estavam mais avançados e que já haviam passado por estágios, por hospitais, que já apresentavam aprendizado significativo para o momento, mas que faltava, por exemplo, fazer uma disciplina optativa, defender o TCC [Trabalho de Conclusão de Curso]. Para nós, esperar um semestre inteiro para permitir essa prática era não entender o momento. Num cenário em que não tínhamos vacina, onde muitos profissionais da saúde faleceram, a gente precisava ter esses estudantes contribuindo para o enfrentamento da pandemia."

Chieregato Matheus destaca que as colações de grau não foram autorizadas de forma equivocada. "As nossas discussões foram sempre permeadas pelas condições de qualidade e de preparo dos alunos. Decidimos, de maneira muito lúcida, consciente, sabendo que não podíamos colocar qualquer profissional no mercado."

O farmacêutico Vitor Mariano, 26, formado na UnB em junho de 2021, relembra o início da pandemia. Ele trabalhou com testagem de covid e garante que essa foi a via de acesso para o seu emprego atual. O aluno egresso da universidade conseguiu emprego assim que se graduou. Hoje atuando em uma franquia de uma grande rede de farmácias, Vitor conta que, apesar do susto com o avanço da pandemia, consegue lidar com seu trabalho devido às experiências adquiridas anteriormente. "Poder ser útil nesse período e já sair da universidade direto para o mercado de trabalho foi uma oportunidade difícil, de muito cuidado, porque você precisa se atualizar, principalmente a respeito da doença que ainda está em circulação. Mas foi uma ótima experiência ajudar nesse momento complicado", diz.

Para Mariano, o processo de facilitação de entrada de novos profissionais no mercado de trabalho foi essencial, em especial na sua área. "O farmacêutico é a porta da frente da saúde. É o profissional mais acessível da comunidade. Em toda farmácia tem um e ele já recebe, de cara, esses pacientes. Muitas vezes, é um local procurado antes mesmo do hospital, para que haja uma orientação, quando há só uma suspeita e não há diagnóstico", afirma.

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. (foto: Editoria de Arte)

Em julho de 2020, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) aprovou uma resolução que permitia o retorno presencial de disciplinas práticas e estágios na área da saúde. O diretor da Faculdade de Saúde (FS), Laudimar Alves de Oliveira, conta que a volta aconteceu de forma gradativa. "Os alunos eram colocados em outras frentes, menos complexas do ponto de vista de biossegurança, para que outros profissionais do hospital pudessem atuar na linha de frente da covid."

Laudimar ressalta a importância dos profissionais recém-formados no cenário da pandemia. "Eles puderam suprir algumas lacunas de profissionais mais experientes, que foram colocados na linha de frente, principalmente na fase mais crítica. Essa antecipação de outorga e a colocação desses profissionais no mercado de trabalho, mesmo com qualificação mínima, permitiu que esses espaços começassem a ser preenchidos. Isso diminuiu o estresse sob a rede pública, fazendo com que esses novos profissionais garantissem alívio à todas as demandas de saúde."

Estagiária sob a supervisão de Jáder Rezende

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