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Desafios na afroeducação ainda persistem no Brasil

Para a educadora Neide Rafael, a Lei que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas ainda não atingiu a sua plenitude

Carmem Souza
postado em 29/01/2023 11:35 / atualizado em 29/01/2023 11:35
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Na lei, são 20 anos de obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas. Na prática, são duas décadas de batalha pelo envolvimento da comunidade escolar em uma temática que, na avaliação da educadora Neide Rafael, é imprescindível para conhecer quem, de fato, somos. "Sem você conhecer a África, você não tem como entender o Brasil", enfatiza a professora.

Pioneira no ensino dessas questões no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, com participação ativa, inclusive, nos processos que culminaram na Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003, Neide Rafael lamenta que ainda existam professores alegando que o não cumprimento da legislação está ligado à falta de material de apoio. Em entrevista à coluna, ela conta que há um arcabouço valioso produzido por intelectuais negros no início dos anos 2000 e que vem sendo fortalecido, principalmente, por profissionais negros e negras que chegaram às universidades. "Ninguém mais pode dizer que não há subsídios intelectuais para fazer cumprir a lei (...) Hoje, não se faz porque não se quer, porque não se tem boa vontade", afirma. Confira os principais trechos da conversa.

A senhora tem um trabalho de ensino de questões ligadas à história e à cultura afro-brasileiras e africanas anterior ao surgimento da Lei 10.639, que acaba de completar 20 anos. É possível fazer um paralelo desses dois momentos?

Precisamos sempre pensar na historicidade. Nada aconteceria com a Lei 10.639 sendo sancionada em 2003 se não tivesse um movimento anterior feito por profissionais da educação, ativistas e pessoas do movimento negro no Brasil. Tem nomes que são importantíssimos e seguem na militância, estão vindo, inclusive, com esse novo governo. É esse universo, de gente que atua por achar que sem você conhecer a África, você não tem como entender o Brasil. Essa é a grande questão com que estamos trabalhando até hoje. E essa África não é só pelos africanistas, é uma África de todos. Há também algumas ações importantíssimas locais, que foram as coordenações de Direitos Humanos e de Diversidade do Distrito Federal, das quais fiz parte. Fico muito orgulhosa quando alguém me fala que sou uma referência, mas a minha referência é um ponto, eu não venho sozinha. Venho com todos, que já fizeram muito. Com pesquisadores que tiveram ações pontuais para a Lei 10.639 e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), como Paulo Freire, Kabengele Munanga, Eliane Cavalleiro, Nilma Lino Gomes e Silvio Almeida. Também com professores do Gama, da Ceilândia, do Paranoá, do Guará, gente que não deixou a lei sucumbir a cada troca de governo. Em âmbito nacional também. Hoje, por exemplo, nenhum professor pode dizer que não tem material para trabalhar essas questões com os estudantes, há um grupo de pessoas que fez isso antes.

E esses materiais são usados?

Houve um grande momento com o (Fernando) Haddad, quando ele era ministro da Educação, de lançamento de um material preciosíssimo, feito com a Unesco, chamado História geral da África. Até hoje, a gente não percebe o uso desse material nas escolas. E essa coleção traz exatamente, em diversos volumes, essa África que a gente não conhece, essa África que é o reduto de todas as civilizações.

Qual o impacto do desconhecimento dessa África para jovens e crianças em formação?

É tremendo. O conhecimento sobre a África se desdobra no que estamos assumindo agora, o debate sobre o racismo estrutural, que não humaniza. Veja essa barbaridade que vivemos no começo deste mês (tentativa de golpe por parte de extremistas). Você acredita que em um país que tivesse investido na educação aconteceria isso? Se tivéssemos uma educação inclusiva, uma educação da diversidade, teríamos aquela barbaridade? Mesmo com as divergências políticas partidárias, as pessoas educadas para respeitar a diversidade parariam e pensariam. Aquelas pessoas não pararam, não pensaram, porque, neste país, gostar de negros e negras não é coisa boa. Gostar do diferente não é coisa boa, não ter uma religião igual não é coisa boa. Falar de essência de humanidade não é coisa boa. Será que a escola é tão redentora que ela poderia ter evitado isso? Eu digo que essa escola capaz de fazer isso é aquela que precisa ocupar um espaço de reflexão. A escola precisa ter a coragem de falar sobre Paulo Freire, que pregava que a educação humaniza.

Quais as suas expectativas com o novo governo?

Que eles façam um trabalho de rede, com todos os ministérios que estão com a nossa temática, com as nossas causas. Ou a gente se une ou vamos ficar na mesmice. Não precisamos inventar a roda. Precisamos pegar os materiais que estão prontos e os tornar obrigatórios. Não é questão de querer ou de não querer, porque, quando você fala de lei, não é para gostar ou não gostar, é para cumprir. O professor tem que ser antirracista na escola fundamental, no ensino médio e na universidade. É estudar, ler, buscar o afroletramento. Fazer o seu papel, porque os estudantes negros demandam isso, eles estão chegando em lugares mais distantes e sendo brilhantes.

Há a reclamação de que só alguns professores se dedicam a essas questões, principalmente nos ensinos médio e fundamental. Como a senhora avalia isso?

É preciso um envolvimento da comunidade escolar. Mas tem uma coisa também que a gente precisa assumir. É aquela história: se eu não sei de você, se você não fala de você, eu posso dizer o que eu quiser de você sobre você. Então, essa questão é nossa, a afroeducação é responsabilidade nossa e também do Estado brasileiro. Nós que vamos apresentar a África aos estudantes, não pode ser só a branquitude porque nem sempre a branquitude quer isso, ela morre de medo da gente. Ela está percebendo que somos potentes, que nós podemos, pois a nossa história de ancestralidade não nega isso. Estamos conseguindo ocupar postos neste país extremamente racista.

Como os professores podem ajudar nisso?

Dizer para esse menino, para essa menina, que ele é capaz, é importante. Cada um tem uma história ancestral que precisa viver dentro do espaço da escola, do espaço cultural, do religioso. Mas a gente vê, às vezes, um profissional da educação calado, que não acredita na potência dos seus estudantes, que mata esse estudante dizendo que ele abandonou a escola como se ele fosse o único responsável pelo seu sucesso. Mas como eu me mantenho em um lugar que não me reconhece, que não me torna visível? Esse lugar que me mata lamentavelmente é a escola.

De que forma as cotas nas universidades têm contribuído para essa luta por mais espaços?

Costumo dizer que o que nos falta é exatamente o que está no privilégio do outro. E nós não estamos satisfeitos com isso. Não tem como você dizer que a criança negra não é uma potência. Ela é raiz, é semente, e não pode ser ceifada. E é isso que as nossas escolas estão fazendo, estão ceifando as nossas crianças. Você me pediu, no começo da nossa conversa, para fazer um paralelo de hoje e do que ocorria há 20 anos. Antes, nós, professores, tínhamos uma dificuldade enorme de materiais. Esses materiais foram produzidos por alguns africanistas, por alguns intelectuais negros. E agora, com o advento das cotas nas universidades, esse material se fortaleceu de uma maneira tão exuberante que ninguém mais pode dizer que não há subsídios intelectuais para fazer cumprir a lei. Não existe mais isso. Hoje, não se faz porque não se quer, porque não se tem boa vontade, porque não se tem propósito político.

 

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