Saúde mental

Distúrbios como o burnout alertam para riscos do excesso de trabalho

Exaustão crônica atinge profissionais com muita responsabilidade e que trabalham sob pressão

Patrick Selvatti
postado em 26/03/2023 06:00 / atualizado em 26/03/2023 06:00
Roberto Aylmer, professor, médico, Ph.D., consultor em desenvolvimento humano e especialista em gestão estratégica de pessoas -  (crédito: Arquivo pessoal)
Roberto Aylmer, professor, médico, Ph.D., consultor em desenvolvimento humano e especialista em gestão estratégica de pessoas - (crédito: Arquivo pessoal)

Dados da Previdência Social apontam que, no Brasil, em 2021, mais de 75 mil pessoas se afastaram do trabalho por conta de problemas mentais. De acordo com a International Stress Management Association (Isma), somos o segundo país com mais casos de síndrome de burnout, um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. A principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho.

Esse foi o caso de Teresa, 37 anos (nome fictício solicitado pela entrevistada por questões profissionais). Ela conta que estava entre os 10 colaboradores que deram início aos trabalhos de uma startup de e-commerce, atuando na área de atendimento ao cliente. Porém, durante a pandemia, a demanda pelos serviços on-line aumentou e, com isso, triplicou o quadro de funcionários que estavam sob sua gestão. Teresa gerenciava a equipe e também atendia clientes. "Houve uma alta rotatividade de funcionários, eu explicava todo o trabalho para quem ingressava na equipe e isso demandava muito tempo. O fluxo das atribuições ficou comprometido e a empresa sempre focou em números em detrimento da qualidade, então eu terminava a jornada de trabalho e não batia ponto, para ficar na empresa concluindo todas as tarefas", explica. "Deixava de ir ao banheiro para não acumular tarefa. Eu trabalhava em casa, à noite...", completa.

O resultado foi o pior possível. A competência de Teresa passou a ser questionada pelos gestores imediatos. Para apresentar resultados, ela não dormia, não se alimentava e, segundo as próprias palavras, parou de trabalhar "com energia, amor e brilho nos olhos". A apatia e uma depressão profunda — resultados de um esgotamento emocional — refletia-se na vida pessoal. Teresa conta que, certa vez, um amigo precisou ser internado e ela foi alertada pela esposa dele, de que estava no mesmo caminho. "Ir para o trabalho doía como se estivessem enfiando facas no meu corpo", lamenta, ainda emocionada pelas lembranças ruins.

Teresa conta que a supervisora, à época, não enxergava nem o esforço nem o sofrimento. Ela jogava a culpa na funcionária, apontando a incompetência dela e aumentando a pressão psicológica. E esse comportamento é bastante comum, de acordo com o médico, professor PHD e especialista em gestão estratégica de pessoas Roberto Aylmer, autoridade nos temas sobre saúde mental no trabalho e liderança. Ele aponta que o gestor imediato pode ser uma ilha de saúde ou de doença mental no seu time. "O chefe direto pode gerar medo ou motivação. No primeiro caso, o trabalhador desenvolve mecanismos de sobrevivência que não geram transparência. É ativado um sistema de alerta contínuo no cérebro, como se a pessoa vivesse na iminência de um perigo. Ele não pode fugir, então congela e gasta mais energia, tem preocupação constante. Há um sequestro moral, faz coisas que não faria, agrada e colabora sem concordar, apenas para sobreviver", explica o especialista.

Chefia imediata e segurança psicológica

De acordo com o professor Aylmer, a segurança psicológica é um fator determinante para a relação trabalhista. "Eu tenho no grupo o direito de errar? Posso falar o que acho certo? Sou bem-vindo? Essas perguntas estão sempre rondando a nossa mente. Hoje, vemos uma constante busca por inovação, por novos talentos, mas tudo depende do contexto, porque o trabalhador tem que ter margem pra errar.O medo é de fazer coisa errada", avalia. Para o especialista, quando há alta maturidade moral nas organizações, os líderes cuidam dos times, mas a baixa maturidade gera competição, como se os membros da equipe fossem gladiadores em uma arena. "E isso está ligado ao chefe imediato. Impossível ter saúde mental quando há medo", conclui.

O grande segredo, segundo o professor Roberto Aylmer ressalta, está na clareza da informação que o gestor traz ao time. Para ele, o que mata as equipes não é o desafio, mas a falta de apoio. "Muito líder espera idolatria e não trabalho em equipe. O chefe imediato é responsável pelo quanto o grupo entende que vale a pena, qual o propósito, o que é relevante. Ele precisa ser a figura que insere o indivíduo ao grupo", explica. O especialista reforça, ainda, que a saúde mental não pode ser terceirizada. "Se a empresa é tóxica, o líder é tóxico, o que eu devo ter em mente, em primeiro lugar é: como eu me capacito para estar noutro local?", ressalta.

Mas, no caso de não haver a opção de mudar de emprego? Aylmer cita alguns antídotos contra o burnout: dormir bem, priorizar a família, realizar atividades físicas e de lazer e escolher as batalhas que devem ser encaradas. "As pessoas que se sentem presas ao trabalho atual criam comunidades de apoio, um suporte mútuo. É importante tentar mudar a forma de a equipe se enxergar, ajudar os pares, levar o bem a alguém. E até mesmo todo o mal trazido pela pandemia tem o lado positivo: a proximidade com a morte nos ajuda a enxergar o que é relevante e o que é tolo. É preciso ter a sabedoria do que é sistêmico e global — como o surto de covid — do que é pessoal", diz.

Sistema de alerta ligado ao máximo

As mudanças na dinâmica das relações de trabalho causadas pela pandemia afetaram a saúde mental dos profissionais. Segundo pesquisa feita pela LHH do Grupo Adecco, empresa suíça de recursos humanos que atua em 60 países, 38% das pessoas ouvidas disseram ter sofrido burnout. O levantamento mostrou também que 32% dos entrevistados informaram que a saúde mental piorou significativamente por conta do trabalho a distância. Os pesquisadores entrevistaram 15 mil pessoas, em meados de 2021, em diversos países do mundo. Para o professor Aylmer, essas ocorrências já eram marcantes antes, mas o período pandêmico trouxe o sistema de alerta ligado ao máximo. "Houve uma extensão de um fenômeno que desorganiza a vida. O bloqueio global, a mídia aterrorizando, uma pressão extra por quase dois anos. Mas é normal não estar normal quando as coisas não estão normais. Só que, quando o alívio veio da parte de infectologia, começou ali o transtorno do estresse pós-traumático", destaca.

Segundo o especialista, os efeitos da covid-19 foram diversos. Ele cita mudanças drásticas na forma de trabalhar e sinaliza que a produtividade das empresas aumentou com o trabalho a distância, trazendo, com isso, o questionamento das pessoas sobre retornar ao sistema presencial. "A qualidade do trabalho melhorou porque algumas empresas adotaram o 100% remoto. Hoje, vemos pessoas largando empregos bons em locais que não adotam o home office, para morar em locais mais baratos, em busca de ter a qualidade de vida que experimentaram na pandemia", observa.

Esse foi o movimento feito pelo designer Raul, 32 (que também pediu pela preservação de sua identidade). Ele vivia uma rotina completamente workaholic, em que dedicava cerca de 12 horas diárias ao trabalho dentro de uma agência, e nem percebeu a deterioração da saúde física e mental em meio ao excesso de jobs que ia recebendo e entregando em meio a prazos desumanos. Dormia cerca de 4 horas por noite, abandonou a atividade física e a vida social, engordou 18kg, passou a fumar o dobro de cigarros, aumentou o consumo de álcool e perdeu um relacionamento de quase cinco anos. Segundo ele mesmo conta, em março de 2020, quando se instalou no Brasil, o novo coronavírus encontrou nele um alvo adoecido, repleto de comorbidades físicas e mentais. "Fui um dos primeiros a contrair o vírus e ele fez a festa no meu organismo. Eu já estava em depressão, com histórico recente de tentativa de suicídio, inclusive. Minhas taxas negativas estavam lá no topo, e não deu outra: foram 40 dias de UTI", relembra o designer.

Raul conta que, após o trauma da covid-19, decidiu aproveitar o momento de distanciamento social com retorno gradativo, no modelo híbrido, para colocar em prática um sonho antigo: transformar o home office em anywhere office e tornar-se um nômade digital. Desde então, carrega seu equipamento eletrônico para lugares que oferecem mais qualidade de vida, longe dos grandes centros urbanos e das cobranças do mundo moderno. "Trabalho onde e quando quero, com a mesma produtividade, mas agora com um estilo de vida mais saudável", observa ele, citando que eliminou os quilos extras que acumulou, parou de fumar e beber e está, há seis meses, em um relacionamento ainda melhor do que o que perdeu. "Eu escolhi viver bem", resume.

Combatendo lideranças frágeis

Victor de Almeida Moreira é autor de um livro  que ajuda líderes a administrarem suas fragilidades
Victor de Almeida Moreira é autor de um livro que ajuda líderes a administrarem suas fragilidades (foto: Jésus Lopes)

Um dos fenômenos vivenciados no mundo contemporâneo, o quiet quitting é caracterizado pela busca de limites bem estabelecidos entre o trabalho e a vida pessoal, em que há maior busca por flexibilidade e propósito no trabalho e equilíbrio e satisfação na vida pessoal. Essa é uma das alternativas adotadas para escapar do burnout. De acordo com a 22ª edição do Índice de Confiança Robert Half, nos últimos seis meses, 52% dos executivos identificaram colaboradores de sua empresa aderindo ao movimento, e 57% acreditam ser uma tendência que vai perdurar no médio e longo prazo. Para o gestor de projetos Victor de Almeida Moreira, essa, entretanto, não é alternativa para a manutenção de equilíbrio emocional. "Quando eu fujo e me deixo mais tranquilo para não me estressar, eu perco o senso de propósito. O ideal é alinhar o meu propósito de carreira ao da empresa", avalia o especialista. "A gente vê inúmeros discursos institucionais de capital humano, mas falta prática", sentencia.

Em busca de solução para questões pessoais, Victor desenvolveu uma metodologia que gerou o livro (Auto)liderança antifrágil, publicado pela Editora Gente. O conceito que dá nome à obra é proposto pelo autor como uma solução para os problemas consequentes de um mundo cada vez mais volátil e instável. Falta de foco, paralisia diante da pressão, acúmulo de tarefas e estagnação são alguns exemplos de obstáculos que podem ser driblados. "Há estruturas que se beneficiam do caos. Para atingir esse equilíbrio, existe um jogo de compensações. Eu preciso definir onde colocar a minha atenção. A autoconsciência ensina a ter um plano estratégico inicial, para identificar os pontos fortes da situação", ele explica.

Victor destaca que expandir o leque de habilidades pode ser útil no combate ao estresse mental causado pelo trabalho. "Reconhecer as forças é também entender o ambiente e a circunstância certas. Primeiro, eu preciso identificar o que tenho como talento. Por exemplo, nem sempre a força que exibimos é algo que as pessoas admiram na gente. A competitividade no local certo é uma grande força e pode gerar um grande ganho. Em vez de anular, é preciso administrar as forças. Não precisa deixar de ser proativo, mas usar nos momentos e locais certos", orienta.

Para o gestor de projetos, um grande motivo de desgaste emocional em relação ao trabalho está relacionado às expectativas negativas que se cria em relação ao futuro. Como a perda do emprego, uma doença inesperada, a iminência de uma nova pandemia devastadora, por exemplo. "O futuro não foi feito para ser previsto, mas sim construído. Gasta-se energia tentando prever em vez de se preparar. É mais fácil estudar para prova do que tentar adivinhar o que vai cair. As pessoas precisam entender que o custo de algumas preparações compensam o resultado que ela vai trazer", ensina.

Investimento em bem-estar

De acordo com a World Health Organization (WHO), a depressão e a ansiedade causaram uma perda de aproximadamente US$ 1 trilhão na economia mundial. Por outro lado, a mesma pesquisa afirma que, para cada US$ 1 investido em ações que promovem melhorias na saúde e bem-estar mental dos colaboradores, US$ 4 são percebidos em ganhos com o aumento da produtividade. Teresa lamenta que essa não tenha sido a realidade na empresa em que trabalhava. Além de haver uma chefia imediata sem sensibilidade à sua situação, ela conta que a startup adota uma cultura de não haver troca de setor. Assim, cabia a ela se adequar ao modelo de gestão ou pedir demissão. "Eu, então, optei pela minha saúde e pedi meu desligamento ao CEO. Ele foi mais sensível ao meu caso e fez a movimentação de setores, abriu a exceção", conta.

Teresa, entretanto, aponta que, no novo posto, ainda percebia em si própria muito resquício da crise. "Demorei cerca de um ano para voltar ao meu eixo e conseguir ficar mais um tempo na empresa. Só que, toda vez que comento, que lembro, não me faz bem. Nem um pouco. É um gatilho que desencadeia ansiedade, depressão. Mas temos que falar, ainda que doa, porque a ferida não cicatrizou, e isso é bom porque avisa quando o risco está próximo", finaliza. (PS)

 

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