Direitos

Por que motoristas de aplicativos resistem à regulamentação

Justiça de São Paulo deu sentença favorável à trabalhadores contra Uber em processo trabalhista, mas contratação via CLT divide categoria

Bruno Azambuja*
postado em 29/10/2023 06:00 / atualizado em 29/10/2023 06:00
Mais de 1,6 milhão de entregadores e motoristas atuam no país sem regras definidas pelas Consolidação da Leis do Trabalho (CLT). Mas a maioria desses profissionais não concorda com a regulamentação -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
Mais de 1,6 milhão de entregadores e motoristas atuam no país sem regras definidas pelas Consolidação da Leis do Trabalho (CLT). Mas a maioria desses profissionais não concorda com a regulamentação - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
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A regulamentação de aplicativos de mobilidade em relação a direitos trabalhistas vem sendo discutida ao redor do mundo. No Brasil, a questão parece distante de um consenso. Em 14 de setembro, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo condenou a Uber a pagar R$ 1 bilhão a motoristas, além de assinar suas carteiras de trabalho, em contratação formal. O inquérito civil público foi impetrado pela Associação dos Motoristas Autônomos de Aplicativos (AMAA). A empresa informou que irá recorrer da decisão. No Brasil, mais de 1,6 milhão de entregadores e motoristas atuam no setor.

Segundo o Instituto Datafolha, em uma pesquisa encomendada pela Uber e pelo Ifood, boa parte dos motoristas da empresa são contra a contratação via CLT e preferem não ter vínculo empregatício com as empresas. O estudo ouviu 2.800 motoristas e entregadores em relação às mudanças que podem ocorrer no Brasil. Foram apresentados dois modelos de trabalho para os participantes da pesquisa: um, com o modelo atual, onde o motorista ou entregador tem autonomia para escolher seus próprios horários e recusar viagens a qualquer momento, mas sem acesso aos benefícios trabalhistas previstos por lei para empregados fichados.

A outra opção, com vínculo empregatício, oferecia acesso aos benefícios trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas as plataformas definiriam a jornada e a remuneração dos funcionários. Além disso, os trabalhadores não poderiam recusar demandas em tempo real ou decidir quando fazer entregas, sob pena de demissão ou sanções. As respostas apontaram que 75% dos motoristas e entregadores preferem manter o modelo atual, enquanto apenas 14% preferem aderir às mudanças. É essa mesma visão que o motoboy Jean Domenico Sousa do Nascimento, 46 anos, tem sobre o assunto. "Hoje, muitos motoristas trabalham com três, quatro aplicativos simultaneamente, e com isso nós tiramos uma boa renda. Com essa nova proposta, nós seríamos obrigados a trabalhar para um só aplicativo e ganharíamos menos do que ganhamos hoje", defende o entregador, que atua há 25 anos no ramo.

Disputa

Homem de moto preta e capacete
26/10/2023. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Regulamentação dos motoristas de aplicativo. Personagem Jean Domenico, entregador motoboy. (foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Na ação, a Uber é acusada de ferir direitos constitucionais e legais mínimos na relação de emprego ao não considerar seus motoristas como funcionários. Em nota, a companhia nega a existência de vínculo empregatício entre o aplicativo e seus motoristas. A decisão da justiça, em primeira instância, sustenta a alegação dos trabalhadores. O tema foi alvo de outras decisões judiciais no próprio estado de São Paulo, em outros tribunais regionais e até no Tribunal Superior do Trabalho. Em muitos destes casos, a Justiça privilegiou as companhias de aplicativo em detrimento dos autores das ações.

De acordo com o artigo terceiro da CLT, considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviço de natureza não eventual a empregador, sob a dependência desse e mediante salário. "Existem alguns critérios para a caracterização do vínculo, como subordinação, comparecimento ao local de trabalho, onerosidade e a habitualidade. Esses critérios se encaixam nas relações de trabalho da Uber", defende Kaique Souza de Araújo, advogado pós graduado em direito do trabalho.

O advogado acredita que o movimento da justiça em enquadrar aplicativos como a Uber, Ifood e 99, entre outros, visa a proteção dos trabalhadores brasileiros, colocando-os debaixo do regime das leis que já existem no país. "Esse sistema de pejotização que se popularizou no Brasil traz a ilusão de que o trabalhador é dono do seu próprio negócio, quando, na verdade, deteriora os princípios do direito trabalhista", comenta. Ele pondera porém, que por ser um modelo de trabalho novo em todo mundo, algumas leis complementares precisam ser criadas para auxiliar a adequação deste modelo de negócio ao marco legal do país.

Professor Antônio Isidro
Professor Antônio Isidro (foto: Arquivo Pessoal)

O professor Antônio Isidro da Silva Filho, pós-doutor em inovação pública e professor no Departamento de Administração da Universidade de Brasília (UnB), concorda com o advogado: "O trabalhador quer otimizar seu tempo tirando o máximo de renda possível, fazendo com que ele pense que este é o melhor modelo, porém, no atual cenário o próprio acaba se tornando vulnerável, caso algo ocorra com ele, pois não possui nenhum amparo do aplicativo."

A CLT garante aos trabalhadores com carteira assinada direitos como FGTS, férias remuneradas e INSS, incluindo licença em caso de acidente ou problema de saúde. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas um a cada quatro motoristas e entregadores autônomos pagam contribuição voluntária ao INSS.

Alternativa

Thalisson Silva, 35 anos, é assistente administrativo e trabalha como motorista de aplicativos para complementar sua renda. Ele se diz a favor da regulamentação: "O trabalhador precisa de um suporte. O modelo da CLT, ao meu ver, não é o ideal, mas fornece o mínimo de proteção e segurança. Além disso, a carteira de trabalho pode ter dois registros, de mais de uma empresa, simultaneamente, dependendo dos horários. Se sair a regulamentação, eu com certeza gostaria de manter os dois empregos."

Segundo o estudo da Datafolha, 49% dos trabalhadores estão na mesma situação de Thalisson: já possuem outro emprego e usam as plataformas como complemento de renda. A maior parte dos entrevistados, 89%, também gostaria de ter certos direitos e benefícios garantidos, desde que não interfiram na flexibilidade, ou seja, desde que se possa continuar trabalhando quando, como e com qual plataforma quiser. 

Para o pesquisador Antônio Isidro, governo e legislativo possuem possibilidades para abordagem do problema. "Eu não vejo essa relação de aplicativo e trabalhador como um vínculo empregatício, mas sim uma relação de parceria. Porém, o trabalhador nesse modelo atual acaba sendo a parte frágil do elo, já que não há uma regulamentação. Para esses negócios inovadores que estão surgindo, pode ser aplicado o Sandbox Regulatório, que ajuda a regular mercados perante novos modelos de negócio."

O Sandbox Regulatório é um programa do Governo Federal que permite a criação de um ambiente regulatório experimental, com a finalidade de suspender temporariamente a obrigatoriedade de cumprimento de normas exigidas para atuação em determinados setores, permitindo que empresas possam usufruir de um regime diferenciado para lançar novos produtos e serviços inovadores no mercado, com menos burocracia e mais flexibilidade, mas com o monitoramento e a orientação dos órgãos reguladores.

Segundo Antônio, quanto mais burocracias e imposições aos aplicativos, menor será a flexibilidade e o lucro que o trabalhador vai obter: "Tem que haver um compartilhamento de riscos entre a plataforma e o parceiro, ou seja, o trabalhador não pode sofrer as consequências sozinho, caso haja uma mudança imposta pela justiça."

Exemplo internacional

Em 2021, a suprema corte do Reino Unido exigiu que a Uber cumprisse as leis do país e passasse a garantir direitos trabalhistas aos seus colaboradores, como o salário mínimo. A ação seguiu rito parecido com o processo brasileiro: foi aberta por dois motoristas junto ao tribunal de trabalho de Londres, que alegavam que a companhia exercia controle significativo sobre eles e que, por isso, estes não deveriam ser considerados como autônomos. A companhia passou a conceder os benefícios exigidos pela justiça e continuou operando no país.

*Estagiário sob supervisão de Priscila Crispi

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