O primeiro-ministro do Líbano, Hassan Diab, não resistiu à crescente onda de manifestações populares que se formou em Beirute, devastada pelas explosões em um armazém no porto, e apresentou, ontem, a demissão em bloco de seu governo. Seis dias após a tragédia, Diab entregou o cargo em meio a mais uma rodada de protestos e defecções no gabinete. Em pronunciamento, culpou a classe política por seu fracasso e atribuiu o desastre no porto, que deixou ao menos 163 mortos, à “corrupção endêmica” do país.
“Hoje, seguimos o povo em sua vontade de uma mudança real e de ver responsabilizados os culpados pelo desastre”, disse o premiê no discurso televisionado. As explosões, no fim da tarde de terça-feira passada, ocorreram durante um incêndio em um armazém que guardava, há seis anos, 2.750 toneladas de nitrato de amônio. “Sem medidas de prevenção”, segundo admitiu o próprio Hassan Diab.
“A catástrofe que afetou os libaneses no coração (...) ocorreu por causa da corrupção endêmica na política, na administração e no Estado. Descobri que a corrupção institucional é mais forte do que o Estado”, acrescentou. A tragédia deixou seis mil feridos e mais de 300 mil desabrigados.
Professor universitário, Diab assumiu o cargo em janeiro. Ao longo de sete meses, seu governo, formado por uma equipe de tecnocratas, teve de negociar carteiras com apenas um campo político, o movimento xiita Hezbollah e seus aliados, especialmente o partido presidencial, a Corrente Patriótica Livre (CPL).
Protestos
Durante o pronunciamento, confrontos foram registrados no centro da cidade, em torno do Parlamento. Manifestantes atiraram pedras contra as forças de segurança, que responderam com gás lacrimogêneo.
A renúncia de Diab não satisfaz o movimento de protesto que pede a saída de toda a classe política, acusada de corrupção e incompetência. No fim de semana, os manifestantes pediram “vingança” contra os políticos, totalmente desacreditados após a tragédia no país, que atravessa uma crise econômica sem precedentes agravada pela epidemia da covid-19. “Todos significa todos”, proclamaram.
Desde o início da tarde de ontem, rumores davam conta de que Diab renunciaria. Na véspera, quatro integrantes de seu gabinete haviam deixado o cargo. Nas horas que antecederam a demissão de Diab, outros dois ministros entregaram as pastas. Nove deputados também abandonaram os mandatos.
A renúncia foi imediatamente aceita pelo presidente do Líbano, Michel Aoun. Diab e o gabinete, porém, devem permanecer no cargo até que o novo governo seja formado e aprovado pelo Legislativo. Antes da demissão, ainda no fim de semana, Diab disse que estava disposto a permanecer dois meses no cargo até a organização de eleições antecipadas.
A comunidade internacional, que há anos clama por reformas e pelo combate à corrupção por parte de Beirute, voltou a mostrar, no domingo, durante uma videoconferência presidida pela França e pela ONU, que não confia nas autoridades libanesas. “Devemos atuar rápido e com eficiência para que a ajuda chegue diretamente ao povo libanês”, ressaltou o presidente francês, Emmanuel Macron, no início da cúpula virtual.
Além disso, ele pediu às autoridades libanesas “que evitem o colapso do país e respondam aos pedidos que o povo libanês manifesta legitimamente nesse momento nas ruas de Beirute”. Primeiro líder estrangeiro a visitar a capital libanesa depois da explosão, chamou para si a responsabilidade de mobilizar a comunidade internacional. A teleconferência arrecadou 252,7 milhões de euros.
Sem esperanças
No local da explosão, onde foi aberta uma cratera de 43 metros de profundida, os socorristas perderam a esperança de encontrar mais sobreviventes. Restam menos de 20 pessoas desaparecidas, segundo as autoridades.
“Exigimos que as buscas continuem”, cobrou, nas redes sociais, Emilie Hasrouty, cujo irmão de 38 anos trabalhava no porto e estaria sob os escombros.
“A catástrofe que afetou os libaneses no coração (...) ocorreu por causa da corrupção endêmica na política, na administração e no Estado. Descobri que a corrupção institucional é mais forte do que o Estado”
Hassan Diab, ex-primeiro-ministro libanês
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Grande prejuízo arquitetônico
No inventário da tragédia provocada pela megaexplosão em um armazém no porto de Beirute, que deixou mais de 150 mortos e comprometeu ainda mais a economia do país, especialistas calculam agora, passados sete dias, os danos à capital libanesa. A destruição de joias arquitetônicas do período otomano ou do mandato francês (1920-1943), entre elas, museus e edifícios tradicionais, chama a atenção. Famosas por suas janelas de três arcos, típicas da cidade, muitas estavam deterioradas pelos efeitos do tempo e pela guerra civil (1975-1990).
As explosões danificaram seriamente, ou mesmo derrubaram, imóveis do século 18, todos mais antigos do que a criação do Estado do Líbano, que completa um século este ano. “É como uma violação”, lamenta Tania Ingea, herdeira de um palácio com colunas de mármore em que os vitrais de mais de 200 anos explodiram, as portas foram derrubadas e alguns painéis de madeira do período otomano também foram avariados.
Construído pela família Sursock, uma das grandes fortunas de Beirute, o palácio resistiu a 15 anos de guerra civil e ao confronto violento entre Israel e o Hezbollah, em 2006. “Uma ruptura entre o presente e o passado”, diz Ingea sobre as explosões da semana passada.
Próximo ao palácio está o Museu Sursock, local de destaque da vida cultural do Líbano que reúne uma importante coleção de arte moderna e contemporânea e que há poucos meses organizou uma exposição inédita de Picasso. Construído em 1912, com uma mistura de arquitetura veneziana e otomana, o imóvel também não ficou imune à explosão.
Os vitrais do museu explodiram, e as elegantes janelas são, agora, enormes buracos. Sacos de entulho se acumulam diante de sua monumental escadaria branca. Entre 20 e 30 obras foram danificadas pelo impacto do vidro das janelas do imóvel, transformado em museu há 50 anos por vontade de Nicholas Sursock, um apaixonado pela arte.
“Não esperava tantos estragos”, lamentou Jacques Aboukhaled, arquiteto responsável pela reforma do espaço que foi reaberto em 2015 após oito anos de obras. A restauração, prevê Aboukhaled, levará mais de um ano e custará vários milhões de dólares.
Uma equipe está encarregada de fazer o levantamento dos danos dos prédios atingidos. “Precisamos fazer as obras de restauração o mais rápido possível”, defendeu Abbas Mortada, agora ex-ministro da Cultura Mortada. “Se o inverno chegar, o perigo será grande”, assinalou.