Anticorpos a galope

Pesquisadores brasileiros obtêm até 50 vezes mais moléculas de defesa contra o Sars-CoV-2 usando soro extraído a partir do plasma de cavalos. Em testes de laboratório, a proteína consegue impedir a replicação do vírus causador da covid-19

Paloma Oliveto
postado em 14/08/2020 01:27 / atualizado em 14/08/2020 01:28
 (crédito: IVB/Divulgação)
(crédito: IVB/Divulgação)

Com base em uma técnica patenteada há 101 anos pelo imunologista brasileiro Vital Brazil — a do soro antiofídico —, pesquisadores do Rio de Janeiro conseguiram obter uma substância que neutraliza o Sars-CoV-2 e poderá ser usada como tratamento de pacientes com covid-19. Em vez de veneno de animais peçonhentos, o produto é o resultado de uma proteína desenvolvida em laboratório, que estimula a fabricação de anticorpos específicos contra o vírus. O resultado do estudo, ainda não publicado, surpreendeu os cientistas. Eles conseguiram obter até 50 vezes mais agentes de defesa contra o coronavírus, comparado ao plasma de pessoas que tiveram doença.
O soro foi obtido a partir do plasma de cavalos, animais utilizados frequentemente para a produção de substâncias antiofídicas. Para que o organismo dos equinos reconhecessem o Sars-CoV-2 sem a necessidade de eles serem infectados, os pesquisadores produziram uma proteína semelhante à spike. Essa estrutura, em formato de espinho, fica na parte externa do vírus e é uma peça-chave na infecção porque, ao se ligar a um receptor na membrana da célula hospedeira, facilita a entrada do micro-organismo no núcleo, onde ele começa a se reproduzir. Por isso, a spike é um dos principais alvos de vacinas e tratamentos para a covid-19.
No Laboratório de Engenharia de Cultivos Celulares do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), uma equipe coordenada por Leda Castilho conseguiu produzir uma proteína — a S —, que se assemelha à spike. “Ela mostrou-se muito efetiva para estimular a produção de anticorpos em cavalos, com uma quantidade muito maior do que a encontrada em humanos que já contraíram a covid-19”, conta a cientista. De acordo com a pesquisadora, como ainda não há tratamento específico para a doença, os anticorpos produzidos pelos animais representam uma esperança de terapia para os pacientes.
Os testes, que envolveram pesquisadores de diversas instituições do Rio e tiveram financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), começaram em 27 de março, na Fazenda Vital Brazil, em Cachoeiras de Macacu, no interior fluminense. Cinco cavalos foram inoculados com a proteína S e, a cada semana, os cientistas faziam exames de sangue para detectar os níveis de anticorpos produzidos. O presidente do Instituto Vital Brazil, órgão do governo do Estado do Rio, e um dos pesquisadores, Adilson Stolet, conta que o processo é seguro e não coloca os equinos em risco. “Já fazemos o soro contra a raiva, por exemplo, que também é um vírus”, exemplifica. “O experimento com o plasma dos cavalos permite que o tratamento seja produzido em grande escala. Os animais não sofrem com a retirada de plasma”, afirma.
Jerson Lima, presidente da Faperj e um dos autores do estudo, apresentou, ontem à noite, o resultado aos colegas da Academia Nacional de Medicina. No evento, transmitido on-line, ele disse que, depois do sétimo dia de inoculação, a resposta imune dos cavalos foi pouca. “Após a segunda inoculação, aumentou e, à medida que as semanas se passaram, foi algo impressionante. No 42º dia, havia perto de 1 milhão (de anticorpos produzidos). Fiquei com inveja porque tive covid-19 e nunca produzi anticorpos”, brincou.

Testes clínicos

O experimento durou 70 dias. “O próximo passo era verificar se esses anticorpos se mantinham depois que o plasma fosse processado”, relatou. Ao ser retirado dos animais, o sangue tem de ser purificado, e os anticorpos, isolados, um processo que pode perder parte das proteínas produzidas. “Vimos que, mesmo com o plasma processado, conseguimos quantidades acima de 100 mil.” Segundo Lima, a “questão de um milhão de dólares” foi saber se essas substâncias conseguiriam neutralizar o vírus. “Foi surpreendente verificar a alta capacidade de inativação do Sars-CoV-2”, comemorou.
Assim como Vital Brazil fez há 101 anos, a equipe de pesquisadores já patenteou a tecnologia e está em fase de organização dos testes clínicos, que dependem da aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Saúde. O cientista contou que a capacidade de produção dos anticorpos e do soro é alta. Atualmente, há 10 cavalos para essa pesquisa no Instituto Vital Brazil. Enquanto o órgão pode processar grandes quantidades de plasma, o Coppe da UFRJ também fabrica a proteína S em larga escala.

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Aposta em hormônio liberado em atividades físicas

 (crédito: AFP)
crédito: AFP

Um hormônio liberado pelos músculos durante a atividade física, a irisina, poderá ser alvo de pesquisas para o desenvolvimento de medicamentos contra a covid-19, segundo estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp) publicado on-line no site Science Direct. Segundo os cientistas, em testes in vitro, no laboratório, a substância foi capaz de modular os genes associados à maior replicação do Sars-CoV-2 nas células do hospedeiro.
“O resultado representa uma sinalização positiva para a busca por novos tratamentos neste momento de emergência com a pandemia”, disse, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Miriane de Oliveira, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu (SP). “É preciso ressaltar que se tratam de dados preliminares, uma sugestão do potencial terapêutico da irisina para casos de covid-19. Estamos indicando um caminho de pesquisa para comprovar ou não o efeito benéfico do hormônio em pacientes infectados”, diz. O resultado do estudo não significa que fazer atividade física protege contra covid-19, mas que essa substância poderá ser usada no tratamento da doença.
Por meio de técnicas de sequenciamento, os pesquisadores identificaram 14.857 genes expressos em uma linhagem de células humanas de gordura subcutânea. Ao tratá-las com irisina, observaram que a expressão de vários genes foi alterada. A irisina, normalmente produzida durante o exercício físico contínuo, é conhecida pela função de modificação metabólica do tecido adiposo branco — que armazena triglicerídeos, lipídios, acumula gordura e pode sofrer inflamação —, tendo função similar ao tecido adiposo marrom. Esse processo favorece o gasto energético, o que torna o hormônio um agente terapêutico para doenças metabólicas, como a obesidade.
Repositório do vírus

Segundo Oliveira, outros grupos de pesquisa sugerem que o tecido adiposo serve como um repositório para o Sars-CoV-2. “Isso ajuda a entender por que indivíduos obesos têm maior risco de desenvolver a forma grave da covid-19. Fora isso, indivíduos obesos tendem a ter níveis menores de irisina, assim como maiores quantidades da molécula receptora do vírus (a ACE2), quando comparados a indivíduos não obesos”, afirma.
Agora, o grupo de pesquisadores da Unesp pretende analisar o efeito do hormônio em células infectadas pelo Sars-CoV-2. “Queremos entender como ocorre a modulação, por parte da irisina, nos genes relacionados à replicação do novo coronavírus”, diz a pesquisadora.

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