Publicidade enganosa e preconceito prejudicam amamentação na China

Apenas um em cada cinco bebês no país é amamentado exclusivamente nos primeiros seis meses de vida, apesar da recomendação da Organização Mundial de Saúde

Agência France-Presse
postado em 20/08/2020 12:21
 (crédito: Jessica YANG / AFPTV / AFP)
(crédito: Jessica YANG / AFPTV / AFP)

A falta de regulamentação, a publicidade agressiva de leite em pó, a ignorância médica, a curta licença-maternidade e os locais de trabalho hostis tornaram a China um dos países com os níveis mais reduzidos de amamentação materna.

Apenas um em cada cinco bebês no país é amamentado exclusivamente nos primeiros seis meses de vida, apesar da recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS). Isto representa menos da metade da média global, de acordo com a lista do UNICEF de 2019, e bem abaixo da meta do governo de 50% das mães amamentarem seus filhos este ano.

As autoridades tentam promover o aleitamento materno criando espaços adequados em locais públicos como parques e estações de trem e ensinando a médicos e enfermeiras seus benefícios, mas especialistas e mães dizem que não é suficiente.

Mary Zhang parou de amamentar há um mês. Teve mastite, uma infecção dolorosa dos dutos de leite que pode causar febre, infecções e, em alguns casos, até hospitalização, mas os médicos lhe deram informações erradas para o tratamento.

"Nada funcionou. Sentia dor e o bebê chorava", lembra Zhang.

"Minha mãe começou a dar leite em pó para ele. Assim que o bebê se acostumou com a mamadeira, passou a recusar o peito", conta.

Apenas 12% dos bebês na China nascem em hospitais onde os funcionários têm conhecimento sobre amamentação, de acordo com o UNICEF.

Mas o maior desafio para a amamentação vem da propaganda incessante e enganosa do leite em pó, depois que o governo revogou o código de conduta da OMS que regulamentava este mercado.

'Mentira total'

As autoridades revogaram as diretrizes que restringiam a publicidade de substitutos do leite materno e que proibiam os assistentes sociais de promovê-los, embora marcas que vendem comida para bebês, como a Danone, ofereçam dinheiro aos médicos para promover seus produtos.

Fang Jin, secretário-geral da Fundação de Pesquisa e Desenvolvimento da China, diz que o poderoso lobby pelos substitutos do leite materno está exercendo "pressão comercial brutal" no maior mercado do mundo.

"A propaganda do leite em pó infantil afirma que ele contém os mesmos nutrientes do leite materno, o que é uma mentira total", afirma.

Um terço do leite em pó infantil mundial é vendido na China, onde o setor movimentou 27 bilhões de dólares (22 bilhões de euros) em 2019 e deve crescer 18% - para cerca de 32 bilhões de dólares - até 2023, de acordo com o Euromonitor.

"Muitas mulheres trazem latas de leite em pó quando vêm para dar à luz. Elas temem não estar produzindo leite suficiente. É um mito propagado pelo lobby", explica Liu Hua, enfermeira do Hospital de Obstetrícia e Ginecologia de Pequim.

Mulheres grávidas raramente recebem informações sobre amamentação durante a gravidez e têm que recorrer a aplicativos ou sites - muitas vezes financiados por empresas de leite em pó - para obter conselhos, diz ela.

A estrutura patriarcal da China não ajuda, diz Liu, já que os maridos "raramente ajudam na alimentação" dos filhos ou em outras tarefas domésticas. As avós cuidam disso.

Mas como esta geração foi a primeira a sofrer uma "lavagem cerebral" com fórmulas e slogans na década de 1980, com falsidades como "só as crianças famintas acordam à noite", isso pode piorar as coisas, afirma Fang.

"Nos primeiros dois dias após o parto, minha sogra culpou-me por não ter leite suficiente e insistiu em dar leite em pó. Isso me fez hesitar. Fiquei deprimida. Até pensei em suicídio porque me sentia insuficiente", disse Ran Qian à AFP, uma mãe de Suzhou.

Previne a mortalidade infantil

As novas mães devem lutar contra velhos hábitos, como dar aos bebês açúcar mascavo ou vinho de arroz doce. As tentativas anteriores do governo para melhorar a situação falharam.

Na década de 1990, as autoridades estabeleceram metas ambiciosas de 80% dos bebês serem amamentados exclusivamente, mas essa ambição foi reduzida em 2000 e foi revisada para que 85% fossem amamentados e recebessem fórmula, mas isso nem mesmo foi alcançado.

Não há dados para 2020, mas Fang e outros especialistas dizem que as metas não serão cumpridas.

De acordo com um estudo do The Lancet, a amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida pode salvar a vida de 800 mil bebês por ano e economizar 300 bilhões de dólares em despesas médicas em todo o mundo.

A China poderia economizar, de acordo com este estudo, US$ 223 bilhões em tratamentos para doenças infantis, como pneumonia, diarreia e asma, se 90% dos bebês fossem amamentados exclusivamente.

A OMS recomenda a amamentação, em combinação com outros alimentos, por pelo menos até dois anos, pois melhora o sistema imunológico e traz benefícios nutricionais, mas apenas 5% das mães no país o fazem.

A amamentação também protege a mãe contra diabetes, câncer de mama e de ovário, doenças cardiovasculares e depressão pós-parto, de acordo com o UNICEF.

A falta de consciência leva ao estigma contra a amamentação em público.

Wang Chao diz que um homem brigou com ela em um restaurante porque amamentar seu filho de quatro meses era "feio", enquanto Chao Anya de Xangai foi chamada de prostituta por "exibir seus mamilos" ao amamentar seu bebê num ônibus.

"A China ainda é um lugar hostil para mães que amamentam", afirma.

Discriminação e pressão

Segundo a lei chinesa, a licença-maternidade é de cerca de quatro meses. E embora as mulheres possam ter uma hora para amamentar durante o horário de trabalho, há poucas instalações e muitas temem ser penalizadas por isso.

"Há um certo nível de discriminação por parte dos superiores", diz Tang Kun, pesquisador de saúde pública da Universidade Tsinghua.

A Comissão Nacional de Saúde da China pediu no mês passado aos hospitais que estabeleçam canais de telefone para informar sobre a amamentação e oferecer aulas para os novos pais. Também pediu publicidade em redes sociais, televisão e jornais para mulheres amamentarem seus bebês para "protegê-los".

Mas Tang diz que a decisão do governo "não vai ajudar porque você tem que ensinar as pessoas a amamentar".

Os políticos devem se concentrar na falta de "especialistas em lactação em hospitais, revisar a educação e como criar um ambiente familiar favorável", diz, antes de acrescentar que as autoridades também precisam regulamentar as empresas produtoras de leite em pó.

A educação é fundamental, afirma, sugerindo a realização de oficinas de amamentação para toda a família durante as consultas de pré-natal e até mesmo o uso de novelas para fornecer boas informações sem pressão.

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