A cena tem sido recorrente na história do continente africano: soldados fortemente armados desfilando pela cidade, após derrubarem os governantes e instalarem um novo regime. Desde 1952, foram 207 golpes de Estado. Sudão, com 15 destituições, Burundi (11), Serra Leoa e Gana (10) e Comoros (8) lideram a lista. Em algumas nações, a democracia sequer existe; governos autocratas perpetuam-se no poder. Em Uganda, onde Idi Amin Dada impôs mão-de-ferro entre 1971 e 1979, o presidente Yoweri Museveni governa há 32 anos e tentará novo mandato em 2021. No Zimbábue, Robert Mugabe — falecido dois anos depois da renúncia — governou de 1987 a 2017. No Sudão, Omar Al-Bashir manteve-se no comando do país entre 1989 e 2019. O golpe mais recente contra a democracia foi desferido no Mali. Na terça-feira, uma junta militar deteve o presidente Ibrahim Boubacar Keita e o premiê Boubou Cisse, além de altos funcionários do governo. Keita entregou o cargo no dia seguinte. Para especialistas consultados pelo Correio, a corrupção, a pobreza, os conflitos etnoculturais e a politização do militarismo são ingredientes para a erosão da democracia.
Sociólogo da Universidade das Letras e Ciências de Bamako, capital do Mali, Bréma Ely Dicko vê graves problemas em países como Guiné, Costa do Marfim, Burkina Faso e Mauritânia. “Nas duas primeiras nações, além de os respectivos presidentes (Alpha Condé e Alassane Ouattara) buscarem permanecer no cargo, a situação geopolítica é muito tensa; as comissões eleitorais não se mostram inclusivas e são alvos de contestação. Em Burkina Faso, governado por Roch March Kaboré, o terrorismo e a oposição cada vez mais ativa representam ameaças às vésperas das eleições de 22 de novembro.
Dinheiro
Segundo Dicko, o dinheiro é o “barômetro” das eleições na África. “Os partidos políticos estão desprovidos de projetos sociais. Os eleitores votam no candidato de acordo com a etnia, o patrimônio e o slogan de campanha, não pelo programa político. Aqueles que chegam ao poder distribuem cargos de ministros e de embaixadores entre amigos e familiares. O dinheiro do Estado acaba desviado, por conta da corrupção e da impunidade”, afirmou. O especialista malinês sustenta que, em seu país, 65% da população têm menos de 25 anos. “Sem saúde ou educação de qualidade, o desemprego empurra as pessoas em direção aos grupos terroristas e à imigração. O Exército transformou-se no segundo serviço civil, e é comum oficiais recrutarem os próprios filhos.”
Para o camaronês John Mukum Mbaku — professor do Departamento de Economia da Weber State University (em Utah, nos EUA) —, a democracia africana está em seus estágios embrionários e precisa de tempo para amadurecer. “Isso somente ocorrerá se cada país dotar-se de um processo de governança amparado pela separação entre poderes, com um sistema de freios e contrapesos eficiente. Cada nação deve buscar praticar um governo constitucional, para proteger os cidadãos de regras arbitrárias”, comentou. Nesse sentido, ele entende que os governos somente podem operar dentro de limites impostos pela Constituição, a qual precisa estar em conformidade com os direitos humanos.
Mbaku aponta que uma das razões para a persistência de golpes na África é a presença de processos de governança fracos e disfucionais em várias nações. Sem eles, funcionários públicos e políticos, incluindo as elites militares, operam de forma impune. “Muitos desses países não têm sociedades civis robustas e politicamente ativas, capazes de servir como fiscais do poder governamental. Também há muito poucas plataformas de midia independentes”, disse. O camaronês acrescenta que os partidos não foram capazes de diversificar suas bases étnicas e religiosas e de criar agendas que apelem aos grupos etnoculturais. Mbaku também cita Camarões, República Centro-Africana e Sudão do Sul como vulneráveis (veja arte).
Por sua vez, o britânico Nic Cheeseman, professor de democracia da Universidade de Birmingham, lembra que nações com alto número de golpes na história tendem a sofrer com problemas estruturais e econômicos. “Por um lado, o enfraquecimento do sistema político aumenta a propensão de destituições. Por outro, o Exército é politizado e, quando uma crise atinge o país, as pessoas começam a olhar para a caserna como a solução. Isso faz com que a linha entre líderes civis e militares se torne cada vez mais tênue”, disse. Cheeseman alerta que, quando essa situação se instala, pode levar gerações e muito trabalho duro para devolver os soldados aos quartéis e restabelecer os líderes civis no governo.
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