França

Polêmica na véspera do júri

Caricaturas do profeta Maomé ilustram a capa do Charlie Hebdo horas antes do início do julgamento de 14 cúmplices do ataque terrorista contra a sede do semanário satírico, em 2015. "Tudo isso por isso", destaca a manchete, em referência à motivação

Correio Braziliense
postado em 01/09/2020 21:58
 (crédito: AFP)
(crédito: AFP)

Após um intervalo de cinco anos, o semanário francês Charlie Hebdo voltou a estampar em sua capa as caricaturas do profeta Maomé que levaram sua sede a tornar-se alvo de um ataque jihadista, em janeiro de 2015. A decisão não foi aleatória. A Justiça francesa inicia, hoje, o julgamento de 14 acusados de dar apoio logístico aos irmãos Said e Chérif Kouachi e a Amedy Coulibaly, autores do atentado que matou 12 jornalistas. Os três estão mortos. O Paquistão reagiu à publicação.
“Desde janeiro de 2015, recebemos, com frequência, pedidos para produzir outras caricaturas de Maomé. Sempre recusamos. Não porque é proibido, a lei autoriza, e, sim, porque era necessário ter uma boa razão para fazê-lo. Uma razão que faça sentido e que aporte algo ao debate”, explicou o semanário em um editorial. “Reproduzir essas caricaturas na semana de abertura do julgamento dos atentados de janeiro de 2015 nos pareceu indispensável”, acrescentou o texto.
Para a equipe do Charlie Hebdo, as caricaturas dinamarquesa são “elementos de prova” para seus leitores e para o conjunto dos cidadãos. A capa da nova edição do semanário satírico, com a manchete “Tudo isto por isso”, também reproduz a charge do profeta feita pelo chargista Cabu, assassinado no atentado de 7 de janeiro de 2015.
“O ódio que nos atingiu ainda está aí e, desde 2015, teve tempo de se transformar, de mudar de aspecto para passar despercebido e continuar sem ruído sua cruzada implacável”, disse Laurent Sourisseau, conhecido por Riss, diretor da publicação, liberada ontem na internet e que chega hoje às bancas. “Não vão nos deixar de joelhos. Nunca nos renderemos, nunca renunciaremos”, completou.
As 12 caricaturas de Maomé foram publicadas, inicialmente, pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em 30 de setembro de 2005 e depois pelo Charlie Hebdo, no ano seguinte. As charges mostram o profeta com uma bomba na cabeça, ao invés de um turbante, ou armado com uma faca, ao lado de duas mulheres com véu.
Além de Cabu, vários desenhistas do Charlie Hebdo morreram no atentado, incluindo Honoré, Tignous e Wolinski, o que provocou um movimento de apoio sem precedentes a favor da publicação, na França e no exterior.
Reações

A decisão do semanário de voltar a publicar os desenhos provocou muitas reações. O presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM), Mohammed Moussaoui, pediu para que as pessoas pensem nas vítimas do terrorismo. “Nada pode justificar a violência”, disse Moussaoui, acrescentando: “Nós aprendemos a ignorar as caricaturas e pedimos para que todos mantenham essa atitude em qualquer circunstância”.
O Paquistão, por sua vez, condenou, “com a maior firmeza”, a decisão do Charlie Hebdo. “Um ato deliberado desse tipo com o objetivo de ferir os sentimentos de bilhões de muçulmanos não pode ser justificado como um exercício de liberdade de imprensa ou liberdade de expressão”, assinalou o Ministério das Relações Exteriores do país muçulmano no Twitter.
O Charlie Hebdo havia publicado uma caricatura de Maomé pela última vez logo após o atentado. Na época, a charge mostrou o profeta com uma lágrima no rosto e um cartaz com a frase “Eu sou Charlie”. A capa assinalava ainda: “Está tudo perdoado”.
Após o atentado à redação do semanário, os irmãos Kouachi e Coulibaly atacaram uma policial e um supermercado de alimentos judaicos. Nos três dias de ação, foram 17 mortos. Coulibaly gravou um vídeo dizendo que os ataques foram coordenados e cometidos em nome do grupo jihadista Estado Islâmico.
Ele foi morto pela polícia no supermercado. Os irmãos Kouachi morreram em uma gráfica onde tinham se refugiado em Dammartin-en-Goele, perto da capital francesa.
Adiado devido à pandemia do novo coronavírus, o julgamento deve se estender até 10 de novembro. Pela primeira vez, um júri por terrorismo terá as audiências filmadas, em vista do interesse público.

Réus

Dos 14 acusados, três serão julgados à revelia: a companheira de Coulibaly, Hayat Boumedienne, e os irmãos Mohamed e Mehdi Belhoucine, que teriam viajado para a região norte da Síria e do Iraque alguns dias antes dos ataques. Segundo várias fontes, os três estariam mortos, mas isto nunca foi confirmado e ainda são alvos de ordens de prisão.
Mohamed Belhoucine, o mais velho dos dois irmãos, e Ali Riza Polat, um francês de origem turca, enfrentam a acusação mais grave, de cumplicidade com crimes terroristas, que pode lhes render a prisão perpétua. A maioria dos outros suspeitos será julgada por associação com um grupo terrorista, um crime punido com até 20 anos de prisão.
Também conhecido por Abou Hamza, Peter Cherif, é acusado de ter ordenado o ataque à redação do semanário. Ele foi capturado em Djibuti e extraditado para a França em 2018.
Alguns dos sobreviventes dos ataques darão seus testemunhos durante o julgamento. “Esse julgamento é um momento importante para eles”, disseram Marie-Laure Barre e Nathalie Senyk, advogadas das vítimas do Charlie Hebdo.
“Estão esperando que se faça Justiça para saber quem fez o que, sabendo que os que apertaram o gatilho não estão mais aqui”, concluíram.

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