EUA

Contraponto racial

Dois dias depois de o presidente visitar Kenosha, o democrata Joe Biden desembarca na cidade, conversa por telefone com homem baleado sete vezes pela polícia e se reúne com familiares. Magnata republicano evitou falar sobre a vítima e recusou encontro

Correio Braziliense
postado em 03/09/2020 22:10
 (crédito: Jim Watson/AFP)
(crédito: Jim Watson/AFP)

Ao visitar Kenosha (Wisconsin), na última terça-feira, o republicano Donald Trump elogiou a polícia, vistoriou os estragos provocados pelos distúrbios raciais e preferiu não se encontrar com familiares de Jacob Blake — o homem negro de 29 anos que ficou paraplégico depois de ser baleado sete vezes nas costas por agentes, em 23 de agosto. Joe Biden, candidato democrata à Casa Branca, fez o oposto, ontem. Depois de desembarcar na cidade, não apenas se reuniu com três irmãos e com o pai de Blake, como falou ao telefone com a vítima da violência policial. Jacob e Biden conversaram durante 15 minutos. “Ele está fora da terapia intensiva. Ele me disse sobre como nada iria derrotá-lo e que, voltando ou não a andar, não irá desistir”, relatou o democrata. Biden também participou de um culto e de um debate com líderes comunitários na Igreja Luterana da Graça. A visita de Biden coincidiu com a divulgação de um vídeo que mostra Daniel Prude, outro homem negro, encapuzado e algemado pela polícia, pouco antes de sofrer uma parada cardíaca (leia abaixo).
Em nota, Ben Crump, advogado da família de Blake, afirmou que Joe Biden e a mulher, Jill Biden, tiveram uma reunião de 90 minutos com parentes do homem baleado, no aeroporto de Milwaukee, antes de seguir para Kenosha, a cerca de 64km. “Eles conversaram sobre como as mudanças no tratamento díspar das minorias nas interações policiais e o impacto de selecionar Kamala Harris (para vice) como uma mulher negra. (…) O senhor Blake (pai de Jacob) discorreu sobre a necessidade de uma reforma sistêmica, pois o uso de força excessiva pela polícia contra as minorias tem sido adotado desde há muito tempo”, relatou. “O vice-presidente (Biden) disse à família crer que o melhor da América está em todos nós e que precisamos valorizar nossas diferenças, enquanto seguimos juntos no grande cadinho cultural da América.”

Comissão

Julia Jackson, mãe de Jacob Blake, e o próprio Crump participaram da reunião por telefone. Também fizeram parte do encontro dois outros advogados. Depois do compromisso em Kenosha, Biden e a esposa deslocaram-se até Wauwatosa, a 50km, e conversaram com pais de alunos e com professores. O democrata prometeu que, caso chegue à Casa Branca, criará uma comissão nacional sobre policiamento que envolveria ativistas de direitos civis e chefes de polícia. “Eu trarei todos à mesa”, avisou, ao destacar que a maioria dos policiais é “gente decente”, mas que há muitas pessoas más em todas as organizações.
Christopher Jude Clark, cientista político da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (Carolina do Norte), disse ao Correio não ter ficado surpreso com o fato de Biden ter decidido reunir-se com a família de Blake. “Tal gesto é consistente com sua mensagem de campanha de promoção da unidade e de defesa da justiça racial. Não tenho certeza de quanto capital político Biden ganhará, pois os eleitores que concordam com a visita a Kenosha parecem-me pessoas inclinadas a votarem no democrata, de qualquer maneira”, explicou.
Clark lembra que as pesquisas apontam a liderança de Biden no âmbito nacional. “O democrata está saindo-se muito bem em vários estados-chave (‘battleground states’). Dito isso, o presidente Trump terá de recuperar-se nos próximos dois meses se desejar permanecer no cargo. Eu acredito que suas ações são um reflexo dessa realidade”, acrescentou.
Antes de viajar a Latrobe (Pensilvânia), onde participou de um comício à noite, Trump ironizou a ida de Biden a Kenosha. “Joe Biden sai do avião, agarra e aperta a mão de um homem bastante atordoado (como nos velhos tempos), então toca a própria face e a máscara com a mesma mão. Nenhuma multidão, nenhum entusiasmo por Joe, hoje. Lei e ordem!”, escreveu o presidente no Twitter, ao tornar a defender a política de repressão aos protestos contra o racismo que se espalham pelos Estados Unidos.
Também democrata, o governador de Wisconsin, Tony Evers, disse à rede de TV CNN que Biden passou “noite e dia” em Kenosha, em comparação com Trump. “Pelo que vi do vice-presidente, ele fez um ótimo trabalho”, elogiou. Evers sublinhou que Biden mostrou empatia para entender as questões futuras.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

De novo, sugestão de votar duas vezes

 (crédito: MANDEL NGAN/AFP)
crédito: MANDEL NGAN/AFP

A exatamente dois meses das eleições presidenciais, uma sugestão feita por Donald Trump, na noite de quarta-feira e repetida ontem, causou mal-estar em todo o país. Em um evento na Carolina do Norte, anteontem, o republicano aconselhou os eleitores a votarem duas vezes. “Se houver o registro de voto não solicitado, envie-os e, depois, dirija-se à mesa de votação. Certifique-se de que foi contabilizado. E, se não for, vote novamente”, declarou.
Ontem, o magnata publicou duas mensagens no mesmo tom, em seu perfil no Twitter, que acabou por censurá-las. “No dia da eleição, ou na eleição antecipada, vá até sua seção eleitoral para ver se o voto postal foi ou não tabulado. Se tiver sido (apurado), você não conseguirá votar, e o sistema postal funcionou adequadamente. Se não tiver sido contado, vote (é um direito do cidadão)”, escreveu. “Se sua cédula eleitoral chegou depois que você votou, ela não será usada ou contada se seu voto tiver sido lançado e tabulado. Agora, você estará certo de que seu precisos voto foi contado, não foi perdido, jogado fora ou destruído. Deus abençoe a América”, acrescentou.
Em comunicado colocado no próprio perfil de Trump, o Twitter afirma que a publicação “violou regras” da empresa “sobre integridade cívica e eleitoral”. “No entanto, o Twitter determinou que pode ser de interesse público que o tuíte permaneça acessível”, explicou a plataforma. Trump tem se mostrado bastante crítico em relação ao voto por correspondência, por entender que esse método facilitaria fraudes. A pandemia da covid-19 deve levar muitos eleitores a preferirem esse tipo de votação. De acordo com a agência France-Presse (AFP), o próprio Trump utilizará essa opção para votar no estado da Flórida, pois reside na Casa Branca.

Ilegalidade

Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, Chris Jude Clark lembrou ao Correio que, nos Estados Unidos, a fraude eleitoral é uma questão partidária. “Os democratas afirmam que o problema é exagerado, enquanto os republicanos consideram o tema importante. A própria diretora-executiva do Comitê Eleitoral da Carolina do Norte destacou a ilegalidade de se votar duas vezes.” “Pedir a alguém que faça isto, também é uma violação da lei da Carolina do Norte”, comentou Karen Brinson.
Em entrevista à emissora Fox News, Kayleigh McEnany — porta-voz da Casa Branca — insistiu que Trump não sugeriu que as pessoas cometam alguma ilegalidade. Segundo ela, o presidente apenas disse aos eleitores para verificarem se a cédula enviada pelo serviço postal foi apurada. “O presidente não está sugerindo a ninguém fazer nada ilegal. O que ele disse muito claramente foi para terem a certeza de que seus votos foram tabulados; se não o forem, então, votem”, explicou. No entanto, McEnany acusou os democratas de buscarem “um sistema fraudulento completo de votação postal”, ao tentar expandir o voto por correspondência durante a pandemia. (RC)

Algemado e asfixiado

 (crédito: AFP)
crédito: AFP

São 3h16 de 23 de março passado. Chove em Rochester, no norte do estado de Nova York. Daniel Prude, um homem negro de 41 anos, está nu, no meio da rua, quando é abordado pela polícia. “No chão! Ponha as mãos para trás. Não se mova!”, grita um dos agentes. Algemado, com o rosto contra o asfalto, o homem repete várias vezes: “Sim, senhor” e “Para Jesus Cristo eu rezo, amém”. A ação dura 11 minutos e envolve pelo menos cinco policiais. “Você já esteve na cadeia?”, pergunta um deles. Depois de quatro minutos de abordagem, Daniel aparece sentado e um dos oficiais coloca um capuz de plástico sobre a cabeça do suspeito. Outro policial se ajoelha sobre o peito do homem detido, que vomita. Pouco depois, Daniel perde a consciência e os policiais tentam uma massagem cardíaca. Quinze minutos após ele dar entrada no hospital, os médicos atestam morte cerebral. Tudo foi registrado em vídeo, divulgado ontem pela polícia, 11 dias depois de outro homem negro, Jacob Blake, ter sido baleado sete vezes pelas costas por oficiais de Kenosha (Wisconsin).
A Procuradoria-Geral do estado de Nova York abriu inquérito para determinar as causas da morte e os excessos da abordagem. A família de Prude acusa a polícia de homicídio. Tashyra Prude, filha de Daniel, falou ontem à imprensa, por meio do aplicativo de videoconferência. “Não entendo como alguém pode dizer ou sentir que ele era uma ameaça à polícia, quando cumpriu com todas as ordens. Um policial racista viu um homem negro em necessidade e decidiu que ele simplesmente não merecia viver”, desabafou. “Até hoje, espero por uma ligação do meu pai. Saber que nunca a terei é algo que parte meu coração. Ir ao colégio sem ele é uma das mais duras jornadas que tenho enfrentado. (…) Eu apenas quero justiça.”

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação