O presidente peruano, Martín Vizcarra, 57 anos, conseguiu resistir à batalha da moção pela vacância e, agora, terá o desafio de permanecer no cargo até 28 de julho de 2021, data das eleições. Pouco depois das 21h55 de ontem (23h55 em Brasília), em votação nominal e por ordem alfabética, o Congresso rejeitou o afastamento de Vizcarra — foram 32 votos a favor da vacância, 78 contra e 15 abstenções. Eram necessários 87 votos a favor da destituição do chefe de Estado. Foi mais um capítulo da instabilidade democrática do Peru, que teve cinco presidentes processados e um morto por suicídio, após acusações de corrupção. Pouco depois das 11h30 (13h30 em Brasília), os 130 congressistas começaram a debater o futuro do chefe de Estado, que adotou um tom conciliador na apresentação da própria defesa.
Vizcarra era acusado de “incapacidade moral”, por ter supostamente incitado assessores a mentirem sobre relações polêmicas com o cantor Richard Cisneros, com quem o Ministério da Cultura firmou contratos irregulares no valor equivalente a R$ 10 mil. Os debates no Congresso arrastavam-se por mais de quatro horas, quando Vizcarra, em visita a Trujillo, a 490km de Lima, instou os legisladores a não postergarem suas decisões. “Uma mensagem respeitosa aos congressistas da República, a maioria provincianos, como eu. Não adiemos as decisões, as que devemos tomar, tomemo-nas hoje e, de uma vez, trabalhemos pelo desenvolvimento”, comentou.
Em entrevista ao Correio, Milagro Campos Ramos — professora de direito constitucional e de política da Pontificia Universidad Católica del Peru — avaliou que, apesar de o resultado da votação ser positivo para Vizcarra, “está longe de ele sair fortalecido”. “A democracia se fortaleceu. Perde o partido Unión por el Perú (UPP), liderado por Antauro Humala, irmão do ex-presidente Ollanta Humala, da esquerda radical. É uma boa notícia para a nação”, explicou.
Por sua vez, José Elice Navarro, advogado, especialista em direito parlamentar e professor da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (em Lima), disse à reportagem que o resultado foi o esperado. “A defesa foi bem planejada, simples e correta. Quase tudo era presuntivo, não havia crime configurado”, comentou. Ele entende que a maioria da população não estava de acordo com a destituição. “As investigações continuarão. Uma na Comissão de Fiscalização do Congresso e outra no Ministério Público. Esperamos que isso sirva de lição, tanto para o Congresso quanto para o governo”, comentou. Navarro também vê um presidente mais debilitado politicamente. “Ele se ofereceu a colaborar com as investigações. Recebeu um tipo de ‘perdão conveniente’, devido à crise que atravessa o país. Vizcarra tem muito a explicar. O Congresso também sai enfraquecido. Terão de fazer algo muito criativo, e de forma coesa, para que as pessoas recobrem a confiança em suas lideranças.”
Defesa
Em breve discurso de 30 minutos, três páginas e 13 pontos, Vizcarra apresentou a própria defesa na tribuna do Congresso, na manhã de ontem. O presidente afirmou que sua presença na sede do Legislativo era importante para dar um sinal de que a democracia peruana é forte. “Venho aqui porque sou consequente em todo o que digo ao longo de minha gestão. Não corro, não o fiz e não o farei agora. Estou aqui, de cabeça erguida e com minha consciência tranquila, não somente ante a vocês, os 130 congressistas, mas perante os 33 milhões de peruanos e peruanas”, declarou. Ao reconhecer que sua voz aparece em “um dos áudios”, Vizcarra reforçou que não reconhecerá, nem aceitará as acusações a ele imputadas. “Pergunto eu: ‘Qual é o delito?’ Com isso, não quero dizer que não se deve investigar, pelo contrário, sou o primeiro interessado em que se analisem todos os detalhes, que se contrastem as informações, e que se chegue ao fundo da verdade”, acrescentou.
Pouco depois, o advogado de Vizcarra, Roberto Pereira, instou o Congresso a rejeitar a moção de impeachment. “Proponho que o pedido de vacância seja indeferido por motivo de incapacidade moral. É evidente que esta moção padece de uma qualificação mínima elementar dos fatos”, argumentou. “Para romper a vontade popular e destituí-lo do cargo é preciso ser absolutamente objetivo e sério”, acrescentou.
Trechos da defesa de Vizcarra
“Não corro, não o fiz e não o farei agora. Estou aqui, de cabeça erguida e com minha consciência tranquila, não somente ante a vocês, os 130 congressistas, mas perante os 33 milhões de peruanos e peruanas.”
“Quero dar confiança ao povo peruano, o único crime, a única ilegalidade comprovada até agora, é a gravação clandestina. Senhores congressistas, não nos distraiamos do enorme desafio que temos à frente, Hoje, uma vez mais, um presidente comparece ante o Congresso, e, desta vez, em meio a uma emergência sanitária que aflige
todo o país.”
“Reconheço que é a minha voz em um dos áudios, já disso isso publicamente. O que de modo algum reconhecerei e aceitarei são as acusações que fazem contra mim e a forma tendenciosa com que as apresentam.”
“Eu pergunto: ‘Qual é o delito?’. Com isso, não quero dizer que eu não deva ser investigado, pelo contrário, sou o primeiro interessado em que se analisem todos
os detalhes, que se contrastem as informações, e que se chegue ao fundo
da verdade.”
“O Peru não pode ficar retido pelo conteúdo de áudios sem nenhuma validade, a gestão da pandemia e a reativação econômica não podem estar em suspenso.”
Martín Vizcarra, presidente do Peru, em seu discurso ante o Congresso
Bastidores
Polêmica na tribuna
O presidente do partido Podemos Perú, Daniel Urresti (foto), protagonizou um dos momentos mais polêmicos do julgamento de impeachment de Vizcarra. Segundo o jornal El Comercio, ele acusou o governo de ter negociado com alguns congresisstas para evitar a destituição do presidente. “Há quem já negociou com o Executivo cargos no interior do país, outros já negociaram ofertas orçamentárias para suas regiões, e outros creem não haver delitos. Os motivos são vários. Nós sabemos que há votos para a destituição”, afirmou.
Carta de desculpas
Karem Roca, a funcionária do gabinete presidencial que gravou uma conversa comprometedora com Vizcarra, divulgou carta de desculpas, ontem, depois de acusar a Marinha de grampear congressistas peruanos. Na missiva, ela sustenta que “as afirmações não são certas e foram feitas em um momento de crise emocional muito aguda”. Na conversa que detonou o escândalo político, Vizcarra pede a Karem Roca e à também assessora Miriam Morales que mintam sobre a quantidade de vezes que o cantor Richard Cisneros esteve no Palácio do Governo. “É preciso dizer que ele foi duas vezes”, em vez de cinco, Vizcarra diz a elas. Ambas fora demitidas.
Ex-primeira-dama presa
A Justiça peruana impôs prisão domiciliar à mulher do ex-presidente Ollanta Humala (E), Nadine Heredia (D), que foi investigada no escândalo da construtora Odebrecht, informou a Câmara Criminal Anticorrupção do Superior Tribunal de Justiça Nacional. Dessa forma, a Turma Penal revogou a liberdade condicional concedida a Heredia por outro tribunal há pouco mais de um mês, e que tinha sido apelada pela procuradora Geovana Mori. A acusação solicitou para Heredia e dois ex-ministros de Humala, Luis Castilla e Eleodoro Mayorga, 36 meses de prisão preventiva por supostos crimes em um contrato para a construção de um gasoduto e uma associação criminosa. Segundo a acusação, a ex-primeira-dama exerceu poder de facto dentro do durante o mandato de Humala (2011-2016).
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