Tem ou não tem ideologia?
Se houve um ponto de convergência entre o governo Bolsonaro e a oposição em torno da controversa visita do secretário de Estado dos EUA a Roraima, uma semana atrás, ela se resume a uma palavra. Em audiência na Comissão de Relações Exteriores do Senado, o chanceler Ernesto Araújo esgrimiu dados e argumentos para rebater críticas como a do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que classificou como “afronta à diplomacia brasileira” as declarações de Mike Pompeo sobre a Venezuela. De parte a parte, ao longo das quase três horas de sessão, “ideologia” foi um dos termos mais usados para desqualificar as posições contrárias.
No saldo da contenda, o que o duro debate atestou foi que a formulação e a implementação de uma política externa se fazem, afinal, de decisões tomadas à base de ideias — ideológicas, portanto. E a presença de um tema como a Venezuela, que frequenta a agenda do Congresso e das disputas presidenciais desde a primeira eleição de Lula, em 2002, contribuiu para tornar ainda mais visível esse traço basilar do embate político.
Como é comum, na política, por vezes aquilo que o discurso nega é exatamente aquilo que se afirma, à revelia da disposição dos atores.
Diz-que-disse
O ponto de partida para a presença do ministro — uma convocação, inicialmente, que a maioria governista tratou de transformar em convite —foi uma fala atribuída a Pompeo. Respondendo à imprensa em Boa Vista (RR), porta de entrada para os refugiados venezuelanos, o enviado de Donald Trump teria sugerido, quase sem sutileza alguma, que o governo americano está determinado a “tirar de lá” o presidente Nicolás Maduro. EUA e Brasil puxam a fila de algo mais que 50 governos que não reconhecem como chefe de Estado o líder chavista. Mesmo um político de centro-direita, como Rodrigo Maia (DEM-RJ), questionou o governo Bolsonaro por aceitar que seja feita de território brasileiro uma ameaça de intervenção em um país vizinho.
A despeito do desmentido do chanceler, que invocou um comunicado da Embaixada americana para sustentar que o mal-estar teria resultado de má tradução, foi a relação bilateral com o governo de Caracas que deu o tom para o duelo entre visões divergentes (por vezes, francamente opostas) do mundo e da inserção do Brasil nele. E, por trás do regime chavista de Caracas, é a relação com os EUA e o governo Trump que esteve sempre — e continua — no centro da disputa.
“Acima de todos”
Foi já na modalidade adotada para a visita do secretário de Estado, bem como na escolha de Boa Vista como cenário, que se concentraram os questionamentos de dois senadores petistas, Jacques Wagner (BA) e Humberto Costa (PE). Ambos caracterizaram o encontro como um ato de “subordinação” do governo brasileiro, ao que o chanceler respondeu atribuindo a mesma categoria hierárquica à relação mantida por Lula com Hugo Chávez, o falecido antecessor de Maduro, patriarca do regime bolivariano e arauto do “socialismo do século 21”.
Em um momento raro e surpreendente de puro embate entre concepções geopolíticas — ideológicas, portanto —, um e outro lado confrontaram as respectivas visões sobre o lugar de Washington na política externa brasileira. “Os EUA são o parceiro que mais podem ajudar o Brasil a se transformar no país que nós queremos”, afirmou o chanceler.
Humberto Costa questionou a isenção fiscal aprovada pelo governo para a importação de etanol americano, apontada como um afago ao presidente americano, que disputa votos estratégicos em estados com produção alcooleira, a menos de dois meses da eleição na qual tenta o segundo mandato. “Se não é para beneficiar Trump, é para beneficiar quem? O nosso setor sucroalcooleiro?”, desafiou.
O duelo se concluiu com um previsível confronto de slogans de campanha: o de Trump (“América em primeiro lugar”) contra o de Bolsonaro (“Brasil acima de todos”).
Sexta série
Como é igualmente comum no debate político, não faltaram momentos de alguma rispidez — aquilo que, em esportes como o boxe, é chamado de “troca franca de golpes”. E a questão do etanol serviu como escada, ao colocar em pauta o tema explosivo da Petrobras. O chanceler fez alusão às investigações iniciais da Lava-Jato, focalizadas na transação com uma refinaria nos EUA, para disparar: “Nos governos anteriores, eram acordos pró-corrupção. Agora, fazemos (com os EUA) acordos anticorrupção”. O líder da bancada do PT, Rogério Carvalho (SE), respondeu de bate-pronto: “Se for para discutir corrupção, vamos começar pela família do presidente”.
Representativo da aspereza das discussões, um comentário de Jacques Wagner emprestou à solenidade da ocasião ares de um bate-boca entre alunos do antigo ginásio: “Ministro, o senhor não está em uma classe de primário”.
Deu bandeira
O elemento teatral, frequente no cenário parlamentar, não poderia estar ausente e subiu ao palco incorporado pelo senador Telmário Miranda (Pros-RR). Um dos primeiros a questionar a presença do secretário de Estado na capital de seu estado e os interesses dos EUA na arregimentação de aliados contra o governo de Caracas, o parlamentar arguiu a urgência de deixar o plenário da comissão. Na despedida, porém, encenou a entrega de um presente ao chanceler. Desfraldou uma bandeira norte-americana e, em seguida, uma brasileira, que foi entregar ao convidado: “Esta, ministro, é que é a nossa bandeira”.
Clube do Bolinha
Em paralelo à discussão que motivou a audiência, roubou a cena a senadora Leila Barros (PSB-DF), que não perdeu a ocasião para cobrar o titular do Itamaraty quanto à presença desigual das diplomatas na atribuição de postos. A ex-campeã de vôlei pela Seleção Brasileira, caloura na arena parlamentar, fez notar que a Comissão de Relações Exteriores vinha de destravar a aprovação de uma extensa lista de embaixadores sabatinados para chefiar dezenas de representações em remanejamento — uma lista que inclui EUA e Argentina, além de vários países africanos e algumas organizações internacionais.
Entre mais de 30 nomes referendados pelo plenário do Senado, apenas três mulheres. “O número é muito baixo, menos de 20% do total”, questionou.
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