O discurso na 75ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira, foi quase uma tentativa de exorcizar os demônios do presente. “O espírito solidário é o que meu governo tem priorizado desde o início. Da pandemia, assim como da pobreza, ninguém se salva sozinho. A Argentina priorizou a proteção à vida e o cuidado aos mais vulneráveis, implementando uma série de medidas de emergência, que permitiram evitar o colapso do sistema de saúde e mitigar as consequências imediatas da pandemia”, declarou o presidente argentino, Alberto Fernández. O líder peronista, que se gabou de um “Estado presente e ativo”, enfrenta um inferno astral. Hoje, amarga uma taxa de desaprovação de 55%, segundo pesquisa da consultoria Giacobbe e Asociados — impopularidade maior do que a do antecessor Mauricio Macri, de 48,7%. Outra sondagem, da consultoria Synopsis, aponta 56,1% de reprovação do governo.
A gestão desastrosa da pandemia da covid-19 e o consequente desastre econômico — além da influência da vice-presidente Cristina Kirchner sobre as decisões da Casa Rosada — impactaram negativamente o governo do esquerdista. A taxa de desemprego alcançou 13,1%, no segundo trimestre de 2020. A população credita os números à decisão de Fernández de impor seis meses de rígido confinamento social. O país amarga mais de 678 mil casos de covid-19 e, pelo menos, 15 mil mortes.
Diretora do doutorado em ciência política pela Universidad Nacional de San Martín (em San Martín, província de Buenos Aires), María Matilde Ollier explicou ao Correio que, no começo da pandemia, a quarentena foi bem recebida, tanto pelos cidadãos quanto pelos partidos políticos da oposição. “O problema teve início quando se produziu a ampliação do confinamento, reflexo do aumento de infecções e de mortes. A forma com que o governo encarou a pandemia, ao defender a dicotomia entre a vida e a economia, começou a perder credibilidade. A quarentena pesou à medida que a economia se deteriorava. Além dos 13,1% de desemprego, houve queda de 19% do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre”, avaliou.
Desilusão
María Matilde também aponta uma desilusão dos argentinos em relação a mudanças ocorridas na conduta de Fernández durante a campanha e à frente da Casa Rosada. Segundo ela, parte dos cidadãos votou no peronista após ele promover o diálogo e o consenso. Com o passar do tempo, no entanto, o mandatário começou a adotar estratégias indicadas por Cristina Kirchner. “Analistas definem a forma de governo da Argentina como hipervice-presidencialista. Isso provocou revolta entre aqueles que votaram em Fernández por pensarem que ele governaria de acordo com o estilo prometido na campanha”, disse. Várias outras decisões desencantaram diferentes setores sociais, entre elas, a reforma do Judiciário; e o repasse de recursos da Cidade Autônoma de Buenos Aires, governada por um opositor, para a Província de Buenos Aires, nas mãos de um kirchnerista. “Em resumo, fez-se cada vez mais evidente a mão de Cristina Kirchner nas decisões do governo”, acrescentou a especialista.
Para o argentino Andrés Malamud, especialista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a queda da popularidade de Fernández se explica por dois fatores: a reversão dos bons resultados iniciais obtidos na luta contra o coronavírus; e a crise econômica, que se aprofunda a cada dia, apesar da exitosa renegociação da dívida externa. “O governo não compreendeu que a quarentena apresenta rendimentos decrescentes: ela tem sucesso inicial, mas vai perdendo-o ao longo do tempo, até tornar-se uma medida contraproducente. O que falhou não foi o instinto inicial do presidente, mas a sua capacidade de adaptação posterior”, afirmou ao Correio.
Agustín Laje Arrigori, cientista político e autor de O livro negro da nova esquerda, concorda que o erro de Fernández foi levantar a “falsa dicotomia entre economia e saúde”. “Ele disse ao povo que deveria se dispor a afundar a economia para salvar a saúde. Agora, a economia foi destroçada por nada, pois a Argentina é um dos países mais afetados do mundo pela covid-19”, lembrou à reportagem. Uma pesquisa publicada pela consultoria Synopsis, em março, mostrou que quase 80% da população se preocupava mais com o coronavírus do que com a economia. “Agora, em setembro, mais de 60% está mais preocupada com a economia. A imagem positiva de Fernández, no mesmo período, despencou.” Arrigori também adverte que o governo de Fernández tomou rumo chavista. “Quando Fernández assumiu, havia um debate sobre quem governaria a Argentina: ele mesmo ou Cristina Kirchner? Hoje, quase todos conhecem a resposta.”
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Pontos de vista
Por María Matilde Ollier
Quarentena fracassada
“Parecia que a estratégia de isolamento adotada pelo governo de Alberto Fernández impediria o agravamento da pandemia da covid-19. Mas, isso não ocorreu. A isso, somaram-se declarações infelizes do presidente, comparando a situação na Argentina com a de Chile e Suécia. Isso trouxe não apenas mal-estar com essas nações, mas mostrou falta de delicadeza ante uma situação tão triste. No começo, a quarentena foi ampliada, sem ser acompanhada de testes e rastreamentos — medidas ainda não realizadas. Com o passar do tempo, o acatamento à medida diminuiu. É difícil manter uma população reclusa em casa por seis meses, sem nenhuma perspectiva de saída. Até agora, não apareceu um plano estratégico de reabertura.”
Diretor do doutorado em ciência política da Faculdade de Política e Governo da Universidad Nacional de San Martín (em San Martín, província de Buenos Aires)
Por Agustín Laje Arrigoni
Péssima gestão
“O fato de a gestão da pandemia ter sido péssima é algo evidente. A Argentina está entre os 10 países com mais contágios no mundo; estamos entrando no ranking dos 15 com mais mortes. Somos a nação com a maior taxa diária de novas infecções. A OMS também colocou a Argentina nos últimos lugares do ranking mundial dos testes. Nossos números são o que há de pior no mundo. O presidente ficou deslumbrado com a imagem positiva de 80%. E não conduziu o país com critérios racionais que atendessem a variáveis econômicas, sociais e sanitárias, mas apenas políticas. Ao contrário, no Uruguai, as coisas foram exatamente o contrário, e seus resultados têm sido melhores. Foram buscadas soluções que não esmagassem liberdades e que não hipotecassem a economia; apelou-se à responsabilidade cidadã.
Cientista político e escritor argentino, autor de O livro negro da nova esquerda