NOBEL DA PAZ

Grito contra a fome

Comitê norueguês concede um dos prêmios mais simbólicos do planeta ao Programa Mundial de Alimentos por seus esforços em levar comida a locais remotos, inclusive áreas afetadas por conflitos. Representantes da agência da ONU falam ao Correio

Rodrigo Craveiro
postado em 09/10/2020 21:14
 (crédito: Albert Gonzalez Farran/AFP - 11/5/16)
(crédito: Albert Gonzalez Farran/AFP - 11/5/16)


Sob a justificativa de que a necessidade de solidariedade internacional e de cooperação multilateral salta à vista no mundo atual, o Comitê Nobel Norueguês decidiu agraciar o Programa Mundial de Alimentos (PMA) com o Prêmio Nobel da Paz. Segundo Berit Reiss-Andersen, chefe do Comitê, a agência das Nações Unidas merece a distinção “por seus esforços no combate à fome, por sua contribuição no aprimoramento das condições para a paz em áreas afetadas por conflitos, e por agir como força motriz na prevenção do uso da fome como arma de guerra”.

“O PMA é a maior organização humanitária no mundo na abordagem da fome e na promoção da segurança alimentar. No ano passado, forneceu assistência a quase 1 milhão de pessoas em 88 países, vítimas de insegurança militar aguda e da fome”, justificou Reiss-Andersen, ao anunciar a escolha pelo laureado. Ela lembrou que, em 2019, 135 milhões de pessoas sofreram de fome crônica — o maior número em muitos anos. “A pandemia de coronavírus contribuiu com um forte aumento no número de vítimas da fome”, acrescentou, ao citar Iêmen, República Democrática do Congo, Nigéria, Sudão do Sul e de Burkina Faso como nações onde a combinação entre guerras e a covid-19 levou a um aumento dramático nos casos de desnutrição.

A chefe do Comitê Nobel Noruguês advertiu que o mundo corre o risco de experimentar uma crise alimentar “de proporções inconcebíveis” se o PMA e outras entidades não receberem o apoio financeiro que solicitaram. “O trabalho do Programa Mundial de Alimentos em benefício da humanidade é um empreendimento que todas as nações deveriam endossar a apoiar, concluiu Reiss-Andersen.

Em viagem ao Níger, David Beasley, diretor executivo do PMA, celebrou a conquista com um vídeo. “É a primeira vez na minha vida que ficou sem palavras. Isso é inacreditável. Falar sobre o ponto mais importante da sua vida, o Nobel da Paz. Isso é por causa da família PMA, que está nos locais mais difíceis e complexos do mundo. Eles estão lá e merecem esse prêmio. Uau! Eu não posso acreditar”, disse, entre sorrisos. Beasley afirmou receber o Nobel da Paz com “profunda humildade”. “É um incrível reconhecimento da dedicação da família PMA, trabalhando para pôr fim à fome, diariamente, em mais de 80 países.” Em comunicado à parte, Beasley destacou o elo indissociável entre “segurança alimentar, paz e estabilidade”.

Para aliviar a fome da população mundial, o PMA freta, diariamente, 5.600 caminhões, 30 navios e quase 100 aeronaves, geralmente por meio de organizações não governamentais e de transportadoras privadas. Em algumas áreas, os funcionários e voluntários da agência da ONU são obrigados a se deslocar sobre o lombo de burros. Com 17 mil funcionários, o PMA é totalmente financiado por doações, a maioria procedente de governos. Em 2019, conseguiu arrecadar US$ 8 bilhões (ou R$ 44 bilhões).

Iêmen

“Estamos profundamente emocionados com o fato de o PMA ter sido honrado com o Nobel. Este é o reconhecimento do trabalho de nossa equipe, que coloca suas vidas em risco, todos os dias, para levar alimentos e ajuda a mais de 100 milhões de crianças, mulheres e homens famintos em todo o mundo”, afirmou ao Correio Annabel Symington, porta-voz do PMA no Iêmen. O país, situado no extremo sul da Península Arábica, é o principal centro de operações do PMA e enfrenta, atualmente, a maior crise de fome no planeta. “Muitas das pessoas que ajudamos fogem de conflitos. A fome é tanto uma causa quanto um efeito de uma conflito. Sem paz e sem estabilidade, nós lutaremos para alcançar a meta de Fome Zero”, acrescentou a porta-voz.

De acordo com Annabel, poucos países no mundo têm uma ligação tão clara entre fome e guerra como no Iêmen. “Por aqui, 20 milhões de pessoas, ou dois terços da população, enfrentam a fome causada pelo conflito e pelo colapso econômico. Meia década de guerra custou 250 mil vidas. Cerca de 100 mil pessoas morreram como resultado direto dos combates. As outras 150 mil em razão da falta de comida, das doenças e a infraestrutura em ruínas”, explicou. Ela acrescentou que, em 2015, em torno de 1 milhão de iemenitas recebiam assistência do PMA. Hoje, são 3 milhões.

 

 

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Entrevista / Daniel Silva Balaban

 (crédito: Natan Giuliano/Divulgação)
crédito: Natan Giuliano/Divulgação

“Trabalhamos para levar esperança”

Em entrevista ao Correio, o economista Daniel Silva Balaban, representante do Programa Mundial de Alimentos (PMA) no Brasil, afirmou que o Prêmio Nobel da Paz coloca luz sobre 690 milhões de pessoas em situação de fome no mundo — cerca de 8,9% da população do planeta. Ele explicou que a pandemia tem acelerado o problema em todo o planeta, com o desemprego e a impossibilidade de acesso à alimentação adequada. “A maioria dos países, em 2020, terá um crescimento econômico negativo”, sublinhou. “Existe fome em todas as regiões do planeta, até nos países desenvolvidos”, advertiu Balaban, também diretor do Centro de Excelência contra a Fome — projeto conjunto do PMA com o governo brasileiro para desenvolver capacidades dos governos mundiais nas áreas de alimentação escolar, nutrição e segurança alimentar.


Como o senhor analisa a importância do Nobel da Paz para o Programa Mundial de Alimentos da ONU (PMA) e de que modo esse reconhecimento pode ajudar a combater a fome no mundo?
Este prêmio é muito importante, pois coloca luz sobre uma população que, até este momento, era esquecida: a população dos menos assistidos, das pessoas que passam fome e enfrentam insegurança alimentar e nutricional ao redor do planeta. Hoje, estamos mais de 690 milhões de pessoas nessa situação. A maioria é formada por mulheres e crianças. Sempre lembrando que 690 milhões de pessoas representa mais do que três vezes a população brasileira. Essas pessoas são aquelas com quem sempre trabalhamos dentro do PMA para levar esperança, alimentos e políticas sociais para saírem dessa situação. Então, o Nobel foi muito importante nesse sentido.


Em que países a situação de fome e de insegurança alimentar é mais drástica?
Existe fome em todas as regiões do planeta, até nos países desenvolvidos. Mas, hoje, segundo as últimas estatísticas, em números percentuais da população, o continente africano é o mais atingido. Logicamente, os países abaixo do Deserto do Saara, a região subsaariana. No entanto, em termos absolutos, o maior número de pessoas que têm fome no planeta está no continente asiático. Também na América Latina, existe uma população muito grande, crescente, de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Infelizmente, este é um problema que atinge a todos.


Quais são os efeitos da pandemia do coronavírus sobre essa crise?
O planeta já sofria de um crescimento da população em insegurança alimentar e nutricional, ou com fome, há pelo menos uns cinco anos. A pandemia veio aumentar este processo. Logicamente, com a pandemia, a crise econômica ficará muito maior. A maioria dos países, em 2020, terá um crescimento econômico negativo. Isso afeta, basicamente, o processo econômico. Então, é óbvio que o desemprego aumentará em todos os países e a situação econômica vai piorar. O reflexo disso estará na maioria das populações que perderá seus empregos, não terá condições de se alimentar e vai ingressar nessa situação de insegurança alimentar e nutricional. A pandemia veio acelerar e aumentar esse processo.


Quantos funcionários o PMA mantém no Brasil e no mundo e de que forma vocês obtêm recursos para garantir um trabalho eficiente?
O PMA é uma agência da ONU que vive de doações, não tem um orçamento definitivo. A cada ano, o PMA tem de trabalhar o seu orçamento. O PMA é um exemplo claro do multilateralismo. São vários países que doam para o PMA para ajudar outras nações menos assistidas. O Brasil é um dos países que ajudam o PMA. É a nona economia do mundo e um dos maiores produtores de alimentos. O Brasil ajuda com a doação de alimentos e a com a cooperação técnica internacional, ao auxiliar outros países a criarem políticas públicas. Então, mesmo vivendo de doações, somos a maior agência da ONU com o maior orçamento e com maior número de pessoal trabalhando, exatamente por estarmos presentes em mais de 80 países, levando alimentos e políticas públicas a essas populações. (RC)

Eu acho...

 (crédito: Arquivo pessoal)
crédito: Arquivo pessoal

“Embora o conflito e a insegurança permanecem como os principais motores da fome, a dimensão da covid-19 está exacerbando a capacidade de sobrevivência de comunidades afetadas. Nós estimamos que o número de pessoas com insegurança alimentar aguda amentará em 80%, para 270 milhões, até o fim deste ano.”

Annabel Symington, porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas no Iêmen

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