O Movimento Ao Socialismo (MAS), do ex-presidente Evo Morales, e um dos principais expoentes da esquerda na América do Sul, está de volta ao poder. “A Bolívia recuperou a democracia. Quero afirmar, sobretudo aos bolivianos, que recuperamos as esperanças”, declarou Luis Arce Catacora, afilhado político de Morales, de quem foi ministro da Economia e Finanças e conseguiu um boom econômico sem precedentes na história do país. O dia seguinte da vitória “contundente” de Arce sobre o centrista Carlos Mesa — por maioria absoluta e cerca de 20 pontos de vantagem, segundo as pesquisas de boca de urna — teve celebração e articulação para a formação de um governo de unidade nacional.
A missão do presidente eleito não será fácil. A Bolívia está mergulhada em profunda crise econômica e na polarização. De acordo com analistas, a relação com o Brasil, o maior vizinho do leste, deverá ser marcada pela tensão política, mas, também, pelos interesses comerciais: até o fechamento desta edição, o presidente Jair Bolsonaro mantinha o silêncio sobre a vitória da esquerda. Procurado pela reportagem, o Itamaraty não se pronunciou.
“Vamos governar para todos os bolivianos, vamos construir um governo de unidade nacional. (…) Vamos reconduzir nosso processo de mudança, sem ódio, defendendo e superando nossos erros”, prometeu Arce. O triunfo do MAS nas urnas lança dúvidas sobre o futuro de Morales e sua eventual participação no governo. “Cedo ou tarde voltaremos à Bolívia, isso não está em discussão. Meu grande desejo é voltar à Bolívia e à minha região (Chapare). É questão de tempo”, anunciou o ex-presidente, hoje exilado na Argentina, depois de perder o apoio dos militares e apresentar a renúncia, em 10 de novembro de 2019.
Doutor em ciência política e professor da Universidad Católica Boliviana San Pablo (em La Paz), Marcelo Arequipa explicou que a eleição de Arce mostrou que, pela primeira vez, os cidadãos votaram por um partido, não por uma liderança concreta. “Isso mostra que o ‘masismo’ é uma corrente política muito forte e histórica. O triunfo de Arce foi a vitória de um projeto político que teve início em 2009, cuja proposta era a formação de um Estado plurinacional”, disse ao Correio. Ele acredita que a distância será importante nas relações políticas com o Brasil. “Existe uma diferença ideológica importante, mas Arce não adota um discurso fundamentalista, como o de Evo Morales. No fim das contas, as relações entre os dois vizinhos seguirão no campo da cooperação e e do comércio”, previu. “À medida que o Brasil provavelmente apoiar a ideia de adesão da Bolívia ao Mercosul, como membro pleno, isso ajudará bastante.”
Maria Teresa Zegada, socióloga, cientista política e professora da Universidad Mayor de San Simón (em Cochabamba), reconheceu ao Correio que houve uma relação de “certa tensão” entre Morales e Bolsonaro. “Imagino que Arce manterá uma linha de política exterior parecida com que a Morales teve em suas gestões. Não há clareza em relação ao continuísmo total da política ou se Arce seguirá linhas distintas”, alertou.
A analista admitiu que Arce buscou cobrar certa autonomia em relação a Evo. “O que está por trás da vitória de Arce é a possibilidade de setores sociais do MAS, até então distanciados de Morales, cobrarem força política no país”, avaliou. Para Zegada, o MAS foi o único partido com carga forte de identificação com os indígenas, com as mudanças e com os setores populares. “O retorno do MAS é um pouco a presença desses setores no Estado.”
Cautela
Por sua vez, Jorge Dulon, cientista político radicado em La Paz e professor de várias universidades bolivianas, prevê uma relação “normal” entre Arce e Bolsonaro, sem provocações por parte do Palacio Quemado, sede do governo da Bolívia. “Arce será cauteloso, levando em conta que o Brasil é uma potência ragional e uma nação estratégica, em termos de negócios, sobretudo a venda de gás. Ele precisará comportar-se de nodo adequado para ter as melhores relações com o Brasil”, disse à reportagem.
Além de vários governos sul-americanos, os Estados Unidos parabenizaram Arce pela vitória. “O presidente (Donald Trump) e os EUA esperam trabalhar com o governo eleito boliviano nos interesses compartilhados dos nossos cidadãos”, declarou Michael Kozak, chefe da diplomacia americana para a América Latina.
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O pai do “milagre econômico”
As urnas da Bolívia premiaram o pai do chamado “milagre econômico”. Aos 57 anos, o novo presidente Luis Arce — ou simplesmente “Lucho” — é economista formado pela Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, com mestrado pela British University of Warwick. Pelo menos um terço de sua vida foi ocupado por vários cargos no Banco Central. Arce também foi ministro da Economia e Finanças durante a maior parte do governo de Evo Morales, com um hiato de 18 meses. Nessa época, a Bolívia aumentou o Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 9,5 bilhões anuais para US$ 40,8 bilhões, enquanto a pobreza caiu de 60% para 37%.
A bonança permitiu ao governo pagar auxílios a milhares de gestantes, estudantes e idosos, além de realizar investimentos milionários para tentar industrializar a exploração do lítio e do gás natural. “Tomamos as decisões apropriadas, que levaram nosso país a liderar vários indicadores econômicos e sociais na região”, disse Arce, depois de ser designado candidato do Movimento Ao Socialismo (MAS).
Pai de três filhos, Arce nasceu em 28 de setembro de 1963, em La Paz, no seio de uma família de classe média. Seus pais eram professores. A origem e a formaçãosão diferentes das de Evo Morales, seu padrinho político. Evo nasceu em uma família de modestos campones e pastores de lhamas, trabalhou durante toda a infência, frequentou a escola por um curto período e tem como língua materna o aimará.
» Pontos de vista
» Por Marcelo Arequipa
Requisitos do poder
“Há três fatores ligados ao poder na Bolívia. O primeiro deles é a Assembleia Legislativa Plurinacional. Está claro, pelo menos por agora, que Arce não terá muitos problemas, pois contará com uma maioria importante. O segundo fator é o mundo organizacional na Bolívia, os movimentos sociais e os comitês cívicos. O terceiro fator é o aparato produtivo de Santa Cruz de la Sierra. Sem ele, não é possível governar. Eu não imagino o cenário em que se pense que, para governar, seja necessário contar apenas com a Assembleia Legislativa Plurinacional.” Doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana San Pablo (em La Paz).
» Por Maria Teresa Zegada
Maioria no Congresso
“O MAS terá uma maioria que não exigirá costuras políticas para a legislação ordinária. Em relação à legislatura anterior, esperamos que o partido tenha maior disposição para incorporar a oposição. Teremos uma oposição qualitamente distinta, em sua maioria formada pela Comunidad Ciudadana. O partido de Carlos Mesa poderá ser interlocutor e criar acordos.” Socióloga, cientista política e professora da Universidad Mayor de San Simón (em Cochabamba).
» Por Jorge Dulon Fernández
Pragmatismo e progressismo
“No governo de Luis Arce, o socialismo na Bolívia deverá ser muito mais moderado, com tendência de centro-esquerda e mais progressista. Penso que Arce terá cuidado na aplicação de políticas macroeconômicas, a fim de retirar o país da crise. O novo presidente eleito é um tecnocrata, saído da classe média. Creio que ele manejará um movimento progressistas e pragmático no campo econômico.” Cientista político boliviano e professor de várias universidades radicado em La Paz.
» Por Mauricio Mefinaceli
Pressão dos indígenas
“O regresso da Bolívia ao socialismo significa que mais do que 50% da população aposta em um partido político chamado MAS; independente de quem esteja na cabeça. Não espero uma governabilidade tranquila de Luis Arce. Haverá muita pressão da ala indígena do partido, que antes era contida pelo então vice-presidente Álvaro García Linera.” Ministro dos Hidrocarbonetos e de Energia da Bolívia entre 2005 e 2006.
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