AMÉRICA DO SUL

"Pepe" Mujica abandona a política

Ex-presidente do Uruguai cumpre a promessa, se desliga do Senado e é aplaudido de pé pelos colegas. Pandemia da covid-19 e doença imune precipitaram saída. Julio María Sanguinetti, também ex-chefe de Estado, toma mesma decisão

Correio Braziliense
postado em 20/10/2020 21:32
 (crédito: PABLO PORCIUNCULA)
(crédito: PABLO PORCIUNCULA)


Foi uma despedida emocionante, porém, breve e sóbria. De sua cadeira na Assembleia Geral do Uruguai (parlamento), José “Pepe” Mujica, 85 anos, foi aplaudido de pé pelos colegas. “Tenho minha cota de defeitos. Sou apaixonado. Mas no meu jardim não cultivo o ódio há décadas. Aprendi uma dura lição que a vida me deu: o ódio acaba sendo estúpido porque nos faz perder a objetividade diante das coisas. O ódio é cego, como o amor, mas o amor é criativo e o ódio nos destrói”, declarou o ex-guerrilheiro tupamaro que governou o país entre 2010 e 2015. Horas antes, o agora ex-senador Mujica tinha entregue sua carta de renúncia (ao lado) à presidente do Senado, Beatriz Argimón. Em seu discurso no plenário, ele expôs os motivos de sua decisão. “Estou saindo porque a pandemia está me lançando para fora. Ser senador é falar com as pessoas, andar por todos os lados. Estou ameaçado por todos os lados: pela velhice e por minha enfermidade imunológica crônica”, acrescentou.
Mujica também deixou um recado aos jovens. “Ter sucesso na vida não é vencer. Ter sucesso na vida é levantar-se e recomeçar sempre que se cai”, afirmou. Segundo o ex-líder da Frente Ampla, “a biologia impõe mudanças, mas também deve haver uma atitude de mudança de dar oportunidades às novas gerações e ajudar a construir o futuro”. “Por isso, tudo aconteceu na minha vida. Fiquei seis meses preso com arame, com as mãos atrás das costas, passei dois anos sem poder me banhar, tinha de usar um copo. Já passei por tudo, mas não odeio ninguém”, disse, segundo o jornal El País, de Montevidéu.
O homem que trabalhou como vendedor de flores na juventude e pegou em armas contra a ditadura, como guerrilheiro tupamaru, foi abraçado pelos companheiros, que não esconderam o clima de comoção. Apesar de abandonar a política ativa, Mujica esclareceu que continuará a aconselhar seus correligionários cada vez que for convocado.

Sanguinetti

A terça-feira foi marcada, ainda, pela renúncia do também senador Julio María Sanguinetti, que ocupou a Presidência do Uruguai por duas vezes, entre 1985 e 1990 e entre 1995 e 2000. Adversário político ferrenho de Mujica, Sanguinetti, 84, lembrou que a própria renúncia estava prevista desde antes das eleições nacionais realizadas em 2019. “O que me motiva é principalmente a necessidade de atender a secretaria-geral do Partido Colorado (PC, centro), minhas atividades jornalísticas e correspondentes editoriais”, escreveu.
“Vocês se perguntariam por que este senhor privilegia seu partido e não desfruta deste órgão? (...) É porque sinto um enorme dever em relação ao meu partido e uma profunda convicção sobre a importãncia dos partidos políticos na vida democrática”, garantiu Sanguinetti. Sorridente, ele retribuiu ao abraço de Mujica, sem se importarem, momentaneamente, com os protocolos de segurança sanitária contra a covid-19.

Personagem da notícia

Vida entre flores e balas

Nascido em uma área operária de Montevidéu, José Mujica trabalhou durante a juventude como florista para ajudar a família, depois da morte prematura do pai. Na década de 1950, testemunhou as lutas operárias, quando o Uruguai dava os últimos suspiros como a “Suíça da América”. Na época, foi membro do Partido Nacional e, posteriormente, inspirado pela Revolução Cubana, escolheu a luta armada. Em meados da década de 1960, ingressou no Movimento de Libertação Nacional MLN-Tupamaros, guerrilha responsável por roubos, sequestros e assassinatos, até sua derrota em 1972, antes da ditadura que se instalou em 1973 até 1985.
Mujica comandava uma das “colunas” que formavam o MLN. Uma das ações mais importantes em que participou foi a “Tomada de Pando”, cidade 35 km a leste de Montevidéu que os Tupamaros invadiram, em 8 de outubro de 1969. O episódio resultou na morte de um civil, um policial e três guerrilheiros. Menos de um ano depois, Mujica quase morreu em choque com a polícia e foi preso. Em 1971, ele e 110 detentos escaparam da cadeia, em uma das maiores fugas da história, por meio de um túnel. Recapturado em 1972, passou a ingressar na lista dos nove “reféns” da ditadura, os chefes do MLN que foram submetidos a torturas. Foi libertado ao ser beneficiado por uma lei de anistia. Em 1994, foi eleito deputado e, cinco anos depois, senador.
Eleito presidente em 2009, esteve alheio a protocolos — continuou a viver em sua chácara, longe do luxo e dirigindo o próprio carro. Seu governo foi atormentado por fracassos: não cumpriu a reforma da educação e fechou a companhia aérea nacional. A economia, entretanto, cresceu.

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Eleitores de Evo celebram Luis Arce

 (crédito: Ronaldo Schemidt/AFP)
crédito: Ronaldo Schemidt/AFP

Depois de mortes e violência política em 2019, a alegria voltou ao bairro boliviano de Senkata com a vitória do esquerdista Luis Arce, o herdeiro político de seu amado Evo Morales. “Valeu a pena todo o sofrimento”, disse José Mamani à agência France-Presse. Há quase um ano, José e vizinhos saíram para protestar em Senkata, na cidade de El Alto, vizinha de La Paz, contra a anulação — por alegações de fraude — das eleições nas quais Morales tinha sido reeleito para um quarto mandato. Foram reprimidos pela polícia em frente a uma fábrica de combustíveis, resultando em uma dúzia de mortos e várias dezenas de feridos. “Me sinto feliz”, diz José, emocionado. Com ele, seus “camaradas de luta” celebraram com música, danças e bandeiras azuis (símbolo de Arce) a vitória eleitoral de domingo, que devolve o poder ao Movimento ao Socialismo (MAS) de Morales.
“Neste bairro choramos, sofremos, passamos dias sem comer, a coca e água”, lembra José, com o rosto ao sol do altiplano, rodeado por uma cordilheira nevada. “Foi muito doloroso o que aconteceu, (a polícia) chutando mulheres de saias, camponesas, foi assim que a presidente interina de direita, Janine Áñez, chegou ao poder”, disse à AFP Ricardo Saavedra, um estudante de 23 anos. Organizações de direitos humanos denunciaram o governo Áñez pelo uso excessivo da força durante os protestos, que deixaram mais de 30 mortos e 800 feridos no país, segundo a ONU.
Quase um ano depois, José agarrou sua bandeira Wiphala (símbolo dos povos indígenas), comprou fogos de artifício e saiu para as mesmas ruas onde um dia houve luto para festejar, dançar e gritar “Jallalla (viva) Distrito 8”. A futura deputada Sabina Condori admite que Evo cometeu erros. “Cada um de nós está errado. E ser humano também é consertar os erros que cometemos”, afirmou a nova deputada.

Apuração

A lenta contagem oficial de votos confirmava, ontem, a vitória esmagadora no primeiro turno de Luis Arce, projetada por dois pesquisadores após as eleições de domingo. Com dois terços das atas de seções escrutinadas por volta das 15h (hora de Brasília), Arce tinha 51,14% dos votos, seguido do ex-presidente centrista Carlos Mesa, com 31,27%. Em terceiro lugar, estava o direitista Luis Fernando Camacho, com 15,49%.
Ontem, em entrevista à emissora britânica BBC, o presidente eleito da Bolívia sinalizou que o seu padrinho político não participará do governo. “Se Evo Morales quiser nos ajudar, será muito bem-vindo; mas, isso não quer dizer que ele estará no governo”, declarou Luis Arce. “Será o meu governo. Se ele quer voltar à Bolívia e nos ajudar, não há problema nenhum. Ele decidirá. Eu não decidirei por ele”, acrescentou. Ao ser questionado sobre quando Morales regressará do exílio na Argentina, ele respondeu: “Não sei, pergunte a ele”. Ante a insistência do repórter, Arce disse: “Não serei desrespeitoso. Mas eu disse isso várias vezes, não sou Evo Morales”.

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