Eleições nos EUA

Trump põe em prática estratégia ensaiada ao declarar vitória e denunciar fraude sem provas

Trump afirmou que já venceu a disputa contra o democrata Joe Biden, que os americanos estão diante de um processo fraudulento e que ele irá contestar a contagem de votos na Suprema Corte

BBC
Mariana Sanches - @mariana_sanches - Da BBC News Brasil em Washington
postado em 04/11/2020 15:03

Às 4h20 da manhã no horário de Brasília, o presidente americano, Donald Trump, deu mais um passo na estratégia política que ensaiou ao longo da campanha à reeleição. Sem evidências ou denúncias consistentes de fraude no processo eleitoral americano, Trump afirmou que já venceu a disputa contra o democrata Joe Biden, que os americanos estão diante de um processo fraudulento e que ele irá contestar a contagem de votos na Suprema Corte.

"Isso é uma vergonha para o nosso país. Nós estávamos prontos para ganhar. Francamente, nós ganhamos as eleições. Pelo bem dessa nação, isso é uma grande fraude. Nós queremos que a lei seja aplicada da forma correta, vamos à Suprema Corte. Nós queremos que todos os votos parem. Não queremos que eles achem dez mil novos votos às 4 da manhã", disse Trump, em pronunciamento na Casa Branca.

E apesar das autoridades eleitorais de Estados como Carolina do Norte e Geórgia garantirem que não há, até o momento, resultados definitivos em suas áreas, Trump afirmou que levou a corrida sobre seu adversário democrata em ambos.

Trump também questionou o fato de a contagem ter sido interrompida em alguns Estados no decorrer da madrugada e sugeriu que seria uma estratégia dos democratas para reverter resultados que lhes foram desfavoráveis.

Trump com apoiadores na noite da eleição
EPA
Sem evidências, Trump afirmou que já venceu a disputa contra o democrata Joe Biden

Críticas de aliados

As declarações de Trump despertaram indignação mesmo entre aliados do presidente.

"Simplesmente não há base para apresentar esse tipo de argumento esta noite", disse o republicano Chris Christie, ex-governador de Nova Jersey, na rede televisiva ABC. "Não concordo com o que [Trump] fez esta noite."

Para o ex-senador conservador Rick Santorum "a ideia de usar a palavra fraude sobre pessoas contando votos é errada". À rede CNN, ele disse que não poderia discordar mais do presidente: "O que a Pensilvânia está fazendo? Contando votos por correio. A realidade é que alguns distritos da Pensilvânia pararam de contar. E por que pararam? Porque são 2h40 da manhã, as pessoas ficam cansadas, podem cometer erros. (...) Eles não estão parando pra tentar alterar alguma coisa ou causar qualquer fraude. Há muita gente ali, há observadores", disse Santorum.

O comentarista político conservador Ben Shapiro foi ainda mais categórico:

"Não, Trump ainda não ganhou a eleição, e é profundamente irresponsável dizer que sim".

As motivações de Trump

Casa Branca no dia das eleições
EPA
Houve protestos na frente da Casa Branca durante a noite

Em retrospecto, é difícil dizer que as declarações de Trump na madrugada pós-eleitoral sejam surpreendentes. Ao longo da campanha, o republicano afirmou que "a única maneira deles (democratas) ganharem é se a eleição for roubada". E se recusou mais de uma vez a se comprometer com uma transferência pacífica de poder caso perdesse. "Queremos ter certeza de que a eleição será limpa, e eu não tenho certeza de que ela será", disse Trump a repórteres no fim de setembro.

Enfrentando sua terceira onda na pandemia de covid-19 e com mais de 230 mil mortos, cerca de 60 milhões de americanos enviaram seus votos via correio. Um recorde em uma eleição com a maior participação de eleitores em mais de cem anos. Votos por correio, no entanto, demoram mais tempo para ser contados.

Além disso, as leis eleitorais estaduais permitem que votos por correio cheguem às seções eleitorais mesmo depois do dia da eleição. No caso da Pensilvânia, um dos mais concorridos Estados, votos postados antes do dia 3 de novembro e que cheguem em até 3 dias após o fechamento das urnas são considerados válidos. Na Carolina do Norte, a espera por votos dura 9 dias.

Além de acusar o sistema de vulnerável, Trump tem se levantado contra a demora e dito que os americanos "têm direito" a um resultado rápido.

Mas alguns fatos têm gerado questionamentos entre analistas sobre as reais motivações de Trump ao fazer esse movimento.

O primeiro é a inexistência de evidências de que eleições pelo correio sejam particularmente vulneráveis à fraude.

O segundo é que informações divulgadas por 20 Estados americanos, mostram que quase metade dos votos antecipados e por correio foram dados no democrata Joe Biden. Por isso, está claro que o cancelamento desses votos afetaria mais duramente seu oponente democrata e facilitaria o caminho do presidente na conquista de mais quatro anos na Casa Branca.

Por fim, a decisão de anunciar contestações na Suprema Corte mais de sete horas após o início das contagens de votos e — especialmente após veículos americanos anunciarem que Biden teria virado no Estado do Arizona a seu favor, frustrando a expectativa republicana. Assim, o comitê republicano pode ter calculado que a vitória de Trump se tornava difícil ou improvável — e o ato do presidente seria uma tentativa de impedir a consolidação de uma derrota.

Neste momento, as projeções indicam uma disputa acirrada e com alto grau de imprevisibilidade.

O risco de violência nas ruas

Quarenta dias antes da eleição, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil já previam a demora nos resultados e anteviam o movimento político feito por Trump essa madrugada. E argumentavam que uma atitude desse tipo mergulharia a democracia americana em descrédito e teria resultados potencialmente perigosos.

Prédios se cercam com tapumes em Washington com medo de violência na eleição americana
Chris McGrath/Getty Images
Prédios da capital americana cobriram fachadas com tapumes com medo de violência na eleição americana

"Acho que se não soubermos o vencedor na noite da eleição, ou pelo menos na manhã seguinte, entraremos em um território perigoso", afirma Richard Pildes, professor de direito constitucional da Universidade de Nova York.

"Porque mesmo que as autoridades eleitorais estejam fazendo tudo de maneira apropriada, o clima político nos Estados Unidos atualmente é tão explosivo que, se houver incerteza sobre o vencedor, podemos imaginar tipos de cenários começando a se desenvolver, incluindo o candidato que parece estar à frente naquele ponto tentando se declarar o vencedor."

Nos últimos meses, o país viveu cenas de confronto violento entre manifestantes Black Lives Matter e apoiadores de Trump e, em setembro uma pesquisa do Instituto YouGov apontou que 74% apostavam que a divulgação de resultados degringolaria para violência nas ruas.

A campanha de Biden qualificou as declarações de Trump de "ultrajantes, sem precedentes e incorretas". E reafirmou confiança em que o processo de apuração continuará.

É um esforço descarado para retirar os direitos democráticos dos cidadãos americanos", afirmou o comitê democrata em nota.

"Nunca antes em nossa história um presidente dos Estados Unidos tentou privar os americanos de sua voz em uma eleição nacional", acrescentou.

Joe Biden na Pensilvânia
Reuters
A campanha de Biden qualificou as declarações de Trump de 'ultrajantes, sem precedentes e incorretas'

Efeitos retóricos e legais

Mas para advogados eleitorais, as palavras de Trump são apenas isso: palavras. Embora fuja da liturgia esperada de candidatos em uma disputa democrática, a autodeclaração de vitória não tem qualquer efeito jurídico.

Quanto ao anúncio de um processo na Suprema Corte, a lei e o histórico eleitoral americano mostram que esse tipo de questionamento pode ser feito pelos candidatos desde que tenham um alvo bem definido e circunscrito.

Em 2000, na eleição entre o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush, a campanha democrata questionou junto à mais alta instância do país a contagem em alguns distritos específicos da Flórida. Não seria legalmente viável para Trump questionar a apuração em vários Estados, de forma generalizada.

Para Benjamin L. Ginsberg, advogado eleitoral republicano, não existe um caminho possível para o presidente Trump na Suprema Corte.

Recentemente, no entanto, a composição do Tribunal foi profundamente alterada pelo próprio Trump. Poucas semanas antes da eleição, a juíza progressista Ruth Ginsburg morreu. Trump indicou para o lugar dela — e o Senado aprovou em tempo recorde — o nome de Amy Coney Barrett, uma magistrada conservadora.

Assim, a Corte passou a ter uma supermaioria de 6 a 3 para os republicanos. Barrett, recém-apontada por Trump, poderia ser o fiel da balança em um julgamento sobre se o republicano receberá ou não um novo mandato.


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