"Vai ter muita briga na Justiça"

Sem provas, Donald Trump afirma que os votos contra ele são ilegais e promete contestar todos os estados em que o adversário venceu. Joe Biden cobra respeito à democracia americana

Jorge Vasconcellos
postado em 06/11/2020 02:23
 (crédito: BRENDAN SMIALOWSKI/AFP)
(crédito: BRENDAN SMIALOWSKI/AFP)

“Em nome da integridade dos votos”, o presidente Donald Trump, candidatos à reeleição, partiu para uma investida no mínimo controversa: o ataque a instituições democráticas. Sem mostrar evidências, o republicano afirmou que houve fraudes “em todo o aparato de apuração”, inclusive em estados governados por seu partido, intensificando os sinais de que não está disposto a reconhecer uma eventual derrota para Joe Biden. “Vai ter muita briga na Justiça”, afirmou. “Não vamos deixar que roubem essa eleição.” O forte discurso foi proferido às 20h45 (horário de Brasília), momento em que Biden ampliava a vantagem em Nevada e enfraquecia a liderança de Trump em Geórgia e Pensilvânia — no início da madrugada, os candidatos empataram na Geórgia, com 49,4%.

O mandatário classificou como “ridículas” as pesquisas que indicavam a vitória de Biden. Segundo ele, todas elas estavam erradas. “Não houve a anunciada onda azul. No lugar disso, tivemos uma onda vermelha”, disse Trump, assegurando que, se apenas os “votos legais” forem computados, ele venceu a disputa “facilmente”. Até o fechamento desta edição, Biden acumulava 264 votos no Colégio Eleitoral (segundo projeção da Associated Press), seis a menos do que o necessário para vencer a disputa. Trump tinha 214.

No discurso, o magnata voltou a atacar o sistema de votos pelo correio, que, segundo ele, “destrói” o sistema eleitoral americano. “É um sistema corrupto e torna as pessoas corruptas, mesmo que elas não sejam por natureza. Eles (os democratas) sabem de quantos votos precisam e acham um jeito de encontrá-los.” A falta de apresentação de provas que sustentassem as acusações fez com que canais de televisão aberta decidissem interromper a transmissão do discurso, que durou cerca de 15 minutos e foi lido pelo presidente. As emissoras alegaram que havia risco de desinformação.

Joe Biden reagiu ao pronunciamento pregando o respeito ao sistema democrático. “Ninguém vai tirar a democracia de nós. Nem agora, nem nunca. A América foi longe demais, travou muitas batalhas e suportou muito para permitir que isso aconteça”, escreveu em sua conta do Twitter. Horas antes, em um pronunciamento, o candidato democrata à Casa Branca, ao lado da candidata a vice, Kamala Harris, pediu aos eleitores que tivessem paciência com o processo de apuração dos votos e garantiu que sairá vitorioso da disputa. “Eu peço que todos fiquem frios, que todos se mantenham calmos. O processo está funcionando, a contagem está sendo totalizada (…) Não temos dúvida de que, quando as coisas terminarem, seremos vencedores.” O impasse também tem se refletido nas ruas. Protestos favoráveis à contagem de votos e de ataque ao sistema de apuração tomam as ruas da cidade desde a quarta-feira.

Batalha árdua
Também parece certo que a disputa nas urnas será substituída por uma forte batalha judicial. Trump anunciou uma grande ofensiva nos tribunais para tentar anular os resultados favoráveis ao seu adversário. “Todos os estados que, recentemente, foram anunciados em favor de Biden serão desafiados judicialmente por nós por fraude eleitoral e fraude eleitoral estadual. Muitas provas, basta olhar a mídia. Nós vamos vencer! América primeiro!”, tuitou o presidente. A publicação foi marcada pelo Twitter como contestável e possível fonte de informações incorretas.

As primeiras investidas, porém, sinalizam que a empreitada pode ser árdua. Ontem, a equipe de campanha do presidente perdeu ações judiciais em Geórgia e Michigan, dois estados-chave. Na Geórgia, alegaram que 53 cédulas atrasadas foram misturadas com cédulas dentro do prazo. Em Michigan, tentaram interromper a apuração e obter maior acesso ao processo de contagem de votos. Juízes estaduais rejeitaram os dois processos devido à falta de provas.

Houve também decisão favorável aos republicanos. A contagem de votos na cidade da Filadélfia, no estado da Pensilvânia, foi brevemente interrompida após um pedido para que a Justiça local decidisse sobre o papel dos observadores no processo de apuração. No país, os partidos podem indicar representantes para acompanhar a abertura e a contagem dos votos. Após um homem reclamar, do lado de fora de um centro de apuração, que não conseguia enxergar as informações escritas, a campanha de Trump protocolou, e ganhou, uma ação na Justiça estadual.

Com a vitória, a distância permitida para os observadores acompanharem a contagem de votos foi reduzida para seis pés (cerca de 1,5 metro). A administração da Filadélfia, comandada por democratas, recorreu a uma instância superior, mas o recurso não havia sido julgado até a noite de ontem. A disputa judicial fez com que os trabalhos de contagem ficassem parados de uma a duas horas, segundo o jornal Philadelphia Inquirer.

Bob Bauer, advogado da equipe de Biden, descartou essas contestações. “Tudo isso tem como objetivo criar uma grande nuvem”, segundo Bauer. “Mas não é uma nuvem muito densa. Nós vemos através dela. Os tribunais e as autoridades eleitorais também veem”, acrescentou.

Observadores denunciam “abuso de poder”

A estratégia de Donald Trump de tentar interromper a apuração dos votos antes do fim do processo eleitoral é avaliada como “um flagrante abuso de poder” por observadores da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). “O que é verdadeiramente perturbador é que o chefe de Estado norte-americano tenha pedido o fim da contagem da Casa Branca, ou seja, com todos os símbolos do poder ao seu redor, devido a sua suposta vitória. Foi um flagrante abuso de poder”, disse o deputado alemão Michael Georg Link, que coordena a missão de observação internacional, em entrevista ao jornal alemão Stuttgarter Zeitung. A OSCE reúne 57 nações, incluindo os Estados Unidos, e é voltada para a promoção da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de imprensa.

AnÁlise da notícia

Sem apoio para impor vitória

ANA MARIA CAMPOS

Não há indícios de fraude na eleição para a Casa Branca. O que há é a derrota de Donald Trump. Foi assim que os âncoras das principais emissoras de tevê dos Estados Unidos, de forma inusitada, não só interromperam, como desmentiram o presidente do país. Está evidente que ninguém vai embarcar nessa história de vitória roubada do democrata Joe Biden.

Nem mesmo os republicanos, correligionários de Trump. Satisfeitos com a maioria folgada na Suprema Corte — foram três ministros conservadores da era Trump — e o bom desempenho do partido no Senado, os republicanos vão colocar as barbas de molho e esperar por um candidato raiz para 2024. Alguém mais confiável ao establishment.

Enquanto Trump discursava ontem e tentava iniciar uma guerra na justiça, os “aliados” o atacavam. O ex-governador da Pensilvania Tom Ridge postou no Twitter: “Com seus comentários na Casa Branca esta noite, o presidente desrespeitou todos os americanos que descobriram uma maneira de votar com segurança em meio a uma pandemia que tirou 235 mil vidas”.

O senador Jeff Flake, do Arizona, postou: “Nenhum republicano deve estar satisfeito com as declarações do presidente. Inaceitável”. No partido de Trump, balançar a democracia americana não é uma boa ideia.

O discurso do candidato derrotado hoje é o oposto do proferido por John McCain quando o republicano assumiu a vitória do oponente, Barack Obama, em 2008 e o parabenizou. Mais do que isso, admitiu as diferenças, mas não deixou de comemorar o avanço dos afro-americanos ao eleger o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos.

Apesar das excentricidades do bilionário Trump, não se pode subestimar a força do presidente. Trump teve 70 milhões de votos. Mas, sem o Partido Republicano, diminui de tamanho. Ele pode até se transformar num candidato outsider para as próximas eleições, mas a disputa nos Estados Unidos sempre esteve entre azuis e vermelhos. Hora de voltar para seu império particular.

 

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  • Discurso teve transmissão interrompida por canais de tevê por risco de desinformação
    Discurso teve transmissão interrompida por canais de tevê por risco de desinformação Foto: Drew Angerer/AFP
  • Democrata pediu aos eleitores que tenham paciência com a apuração:
    Democrata pediu aos eleitores que tenham paciência com a apuração: "Seremos vencedores" Foto: BRENDAN SMIALOWSKI/AFP

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