Cautela, apreensão e ironia

Autoridades europeias evitam comentar o impasse na apuração americana, exaltando, porém, a necessidade de valorização do processo democrático. Teerã zomba da situação

Correio Braziliense
postado em 06/11/2020 02:25
 (crédito: Sandy Huffaker/AFP)
(crédito: Sandy Huffaker/AFP)

Diante da demora e dos impasses judiciais que multiplicam-se durante a apuração eleitoral americana, a comunidade internacional acompanha com ansiedade o desfecho da disputa. Num cenário ainda aberto, apesar de as projeções matemáticas apontarem para uma possível vitória do democrata Joe Biden, líderes europeus adotam uma postura de cautela, e ressaltam que é necessário aguardar uma definição. Ao mesmo tempo, alguns países com histórico de problemas diplomáticos com os Estados Unidos evitam comentários sobre o pleito, enquanto outros zombam da situação dos americanos.

Após uma série de pedidos à Justiça para suspensão da apuração e acusações de fraude apresentados pelo presidente Donald Trump, autoridades europeias defenderam que confiar no sistema eleitoral é o melhor caminho a ser seguido. “É tão importante que, nesses momentos, o que conte seja a calma, a tranquilidade, a apuração de todos e de cada um dos votos, e que se valorize esse incrível sistema que é a democracia, que é o sistema em que todos queremos viver”, declarou Arancha González Laya, ministra espanhola dos Assuntos Exteriores. “Nós não escolhemos quem vai ser o presidente americano, e nós sempre trabalharemos com quem o povo elege”, acrescentou a chanceler, em entrevista concedida, ontem, a rádio espanhola Onda Cero.

A França também sinalizou que pretende construir uma conexão amigável com o vencedor, seja ele o republicano Trump ou democrata Biden. “A eleição de um presidente depende dos americanos. Teremos que trabalhar com o eleito e com a nova administração americana, aconteça o que acontecer”, ressaltou o ministro das Relações Exteriores, Jean Yves Le Drian.

Para o chanceler francês, Washington e União Europeia terão de construir uma “nova relação transatlântica” após as eleições presidenciais americanas. Ele também destacou sua confiança no sistema eleitoral americano. “Tenho fé nas instituições dos Estados Unidos para validarem os resultados da eleição”, disse Le Drian à rádio francesa Europe 1.

O chanceler Heiko Maas, da Alemanha, reforçou as declarações dos colegas. “É importante que todos os políticos tenham confiança no processo eleitoral e nos resultados”, explicou. Maas também insistiu na necessidade de se ter paciência e esperar o fim da apuração.

Pouco antes, a ministra alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, havia manifestado apreensão diante da “situação muito explosiva” nos Estados Unidos. A ministra alertou para os riscos de uma “potencial crise constitucional” no país. “É algo que deve nos preocupar”, destacou.

Críticas
O Irã não economizou o tom irônico ao comentar os imbróglios da apuração de votos da eleição americana “É uma situação digna de se ver! Ele diz que são as eleições mais fraudulentas da história dos #EUA. Quem? O próprio presidente que está no comando agora!”, declarou, na madrugada de ontem, o aiatolá Ali Khamenei, em mensagem publicada no Twitter.

Em visita à Venezuela, Mohammad Javad Zarif, ministro iraniano das Relações Exteriores, também comentou a demora da divulgação de resultados da eleição americana, assinalando que os EUA não conseguem mais “controlar o que está acontecendo no mundo”. “A hegemonia ocidental acabou”, decretou, ao elogiar o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, por resistir a uma suposta campanha coordenada pela Casa Branca para tirá-lo do poder.

Para Moscou, a falta de clareza nos resultados da eleição americana pode ter um impacto negativo na economia global e no mundo em geral. “Tudo que se refere ao nosso país é visto nos Estados Unidos como um pedaço de pano vermelho na frente de um touro”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov. “Por isso, não fazemos comentários! Os americanos terão, provavelmente, que pôr ordem em seus assuntos”, acrescentou. Peskov apontou, porém, que essa “incerteza (eleitoral) vinculada à primeira economia do mundo (...) poderá ter efeitos negativos no mundo, sobretudo nas finanças”.

A China, que mantém uma relação de altos e baixos com Washington, classificou o assunto como doméstico, evitando comentários.

Na Nigéria, Shehu Sani, senador e ativista na área de direitos humanos, usou um tom de brincadeira para falar das falhas na apuração americana. “A África costumava aprender com a democracia americana, a América agora está aprendendo com a democracia africana. Observadores eleitorais africanos, onde você estão? Flórida, Wisconsin ou Arizona?”, tuitou ontem.

O inusitado ficou por conta do primeiro-ministro da Eslovênia, Janez Jansa. O premiê parabenizou Trump pela vitória, ainda na quarta-feira, após o republicano ter se declarado vencedor das eleições, em meio à apuração. “Parece claro que os americanos elegeram Donald Trump”, tuitou Jansa, líder do partido anti-imigração SDS, aliado do americano.

“A eleição de um presidente depende dos americanos. Teremos que trabalhar com o eleito e com a nova administração americana, aconteça o que acontecer”

Arancha González Laya, ministra dos Assuntos Exteriores da Espanha

“É uma situação digna de se ver! Ele diz que são as eleições mais fraudulentas da história dos #EUA.Quem? O próprio presidente que está no comando agora!”
Aiatolá Ali Khamenei, do Irã, no Twitter


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Processo de alta complexidade

 (crédito: OLIVIER TOURON/AFP)
crédito: OLIVIER TOURON/AFP

Complexo por natureza, em razão da metodologia, a contagem dos votos das eleições dos Estados Unidos esbarrou, este ano, num complicador a mais: por conta da pandemia, os americanos começaram a votar semanas atrás e colocaram suas últimas cédulas nas urnas na noite de terça-feira. Em todo o país, de proporções continentais, os agentes eleitorais pedem paciência aos cidadãos. “Ir rápido é ótimo. Mas, preferimos ser exatos”, disse Gabriel Sterling, chefe das operações de votação na Geórgia, um estado do sudeste onde, no meio da tarde de ontem, restavam menos de 60 mil cédulas para serem contadas.

Nos Estados Unidos, a organização das eleições, com várias votações simultâneas (presidente, Congresso, cargos estatais, referendos...), fica a cargo das autoridades locais. As regras de votação e os métodos de contagem variam de estado para estado e, às vezes, de condado para condado. Em alguns lugares, os eleitores votam em urnas, embora a maioria dos estados prefira as cédulas, que permitem o controle a posteriori.

O eleitor pode inserir essas cédulas ele mesmo em uma máquina que as escaneia e registra sua escolha. Outra possibilidade é depositá-las nas urnas ou enviá-las pelo correio — nesse caso, geralmente, devem ser colocadas em dois envelopes para preservar a confidencialidade.

A contagem desses votos é mais longa, pois os agentes eleitorais devem, primeiro, verificar se atendem aos requisitos legais (assinaturas, data de envio, etc.). Eles, então, têm que abrir esses dois envelopes, achatar as cédulas, digitalizá-las e, se a máquina não puder lê-las, contá-las manualmente.

Tudo isso requer uma logística enorme. Em um condado da Geórgia, o gerente de operações de votação disse, na quarta-feira, que seu maior problema era a falta de espaço para dispor as mesas necessárias para o trabalho dos que cortam os envelopes, extraem as cédulas e as achatam.

Este ano, com os efeitos da covid-19 no país, o mais atingido pela pandemia, as autoridades de muitos estados ampliaram a possibilidade de voto antecipado, ou pelo correio, para reduzir as filas de espera em 3 de novembro, que favoreceriam a contaminação pela covid-19. Mais de 100 milhões de eleitores fizeram uso dessa modalidade, um recorde histórico.

Alguns estados examinam essas cédulas, que demoram mais para serem recebidas. Mas, devido a disputas políticas locais, Pensilvânia, Wisconsin e Michigan tiveram que esperar o fechamento das urnas para começar a recontagem.

Pesa ainda, segundo a avaliação de analistas, o fato de que alguns desses estados mal haviam usado o voto por correio antes das eleições encerradas na última terça-feira. Na Pensilvânia, por exemplo, 2,6 milhões de cédulas foram enviadas pelo serviço postal, 10 vezes mais do que o normal. Sem contar que vários estados autorizam a contagem dos votos enviados até o último momento do pleito, mesmo que cheguem três dias depois (Pensilvânia) ou em até nove (Carolina do Norte).

Falhas técnicas
Deixando de lado os problemas com computadores, a falta de cartuchos de tinta ou os apagões ocorridos na terça-feira, várias falhas técnicas levaram a atrasos na contagem. Na Carolina do Sul, um erro de impressão retardou a contagem de 14,6 mil votos porque uma marca no topo das cédulas não era grande o suficiente para ativar os scanners, informou a CNN.

No condado de Allegheny, na Pensilvânia, onde cerca de 30 mil votos permanecem pendentes de contagem, as operações foram suspensas ontem, gerando indignação. Algumas pessoas acusaram os agentes de terem tirado um dia de folga, mas, segundo um jornalista local, a interrupção se deve ao envio aos eleitores de cédulas com erros e depois versões corrigidas. Isso obriga a revisão manual dos votos, e o código eleitoral local exige que essa operação seja feita por agentes juramentados, que farão isso hoje.


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