Os protestos que dividiram os Estados Unidos desde o início do ano encontraram fôlego importante nas eleições. Desde quarta-feira, os americanos estão nas ruas e, dessa vez, é a presidência que está em jogo. Depois de “eu não posso respirar”, é a vez do “todos os votos contam” e do “parem de contar”. Do Arizona, no sudoeste do país, a Nova York, na costa leste, o povo foi às ruas para defender a democracia americana, cada um com sua versão do que seria uma contagem justa dos votos.
Os protestos tomaram as ruas de, pelo menos, sete cidades, e ganharam corpo depois que o presidente Donald Trump passou a tuitar e discursar sobre fraudes nos estados em que não ganhou. Nenhuma das acusações de corrupção do processo eleitoral americano foram provadas até agora, mas Trump insiste em inflamar a população pedindo que se encerre a contagem dos votos.
Na Filadélfia, que em outubro enfrentou toque de recolher depois de manifestações violentas contra a brutalidade policial, as ruas voltaram a ficar cheias. Epicentro da decisão eleitoral, a maior cidade da Pensilvânia tende a votar nos democratas e será decisiva no resultado final. Na noite de quarta-feira, manifestantes do Contem todos os votos, formado por grupos políticos progressistas e integrantes do Black Live Matters, protestaram em frente ao City Hall.
Para muitos manifestantes, estar ali era consequência da mesma violência que tirou a vida de Walter Wallace Jr., o jovem negro de 27 anos executado pela polícia com 10 tiros em outubro. “Acreditamos que o mesmo sistema que está tentando parar a contagem dos votos assassinou Walter”, disse Bryan Mercer, diretor-executivo do Movement Alliance Project, ao jornal The Philadelphia Inquirer. Na noite de quinta, dezenas de pessoas pró e anti-Trump protestavam em frente ao Centro de Convenções da Pensilvânia, no qual os votos estão sendo contados.
Armas em punho
Em Chicago, também na noite de quarta-feira, centenas de pessoas foram às ruas para pedir que todos os votos fossem contados. Muitos deles carregavam cartazes que diziam Fora Trump. Próximo à Casa Branca, no cruzamento que ficou conhecido como Black Lives Matter Plaza, também houve protestos anti-Trump.
Em Phoenix, no Arizona, um grupo de manifestantes apoiadores de Trump tentou invadir o local de apuração antes de ser retirado pela polícia. Segundo a ABC 15 Arizona, uma televisão local, eles estariam armados. O Arizona é um dos estados chaves nos quais os democratas teriam ganhado, embora a apuração ainda não estivesse finalizada até a noite de sexta. Blogueiro de extrema direita e celebridade no YouTube, Mike Cernovich foi um dos responsáveis por convocar o protesto e elevar a tensão, com agressões a jornalistas que acabaram levando a polícia a colocar as equipes de televisão para dentro do Maricopa County Elections Center, local de apuração dos votos.
Protestos pró-trump, que pedem a interrupção da contagem dos votos, também eclodiram em Las Vegas, no Nevada, outro estado chave para que pode virar as eleições e cuja apuração é a mais lenta do país. No condado de Clark, as autoridades requisitaram segurança extra com medo de possível confronto com os manifestantes.
Marchas
Até mesmo cidades com votação encerrada, como Nova York, Portland e Miami, foram palco de manifestações. Em Nova York, o grupo Protejam os resultados marchou da Biblioteca Pública até o Washington Square, em Greenwich Village. Muitos carregavam cartazes com os dizeres Todo voto conta/Contem todos os votos.
Em Atlanta, na Geórgia, estado que começou republicano e, na manhã de ontem, passou a ter maioria de votos para os democratas, uma pequena multidão se reuniu em frente a State Farm Arena, no qual os votos estão sendo contados.
Na quinta-feira, o Facebook baniu da rede o grupo Stop the steal (Parem o roubo), usado por apoiadores de Trump para organizar uma série de protestos para interromper o que chamam de eleição fraudulenta. Moderado por Amy Kerner, uma ativista do Tea Party que ajudou a fundar o grupo Mulheres por Trump, o Stop the steal recebeu 350 mil seguidores em apenas um dia e foi tirado do ar, segundo o Facebook, por deslegitimar o processo eleitoral americano e por incitar a violência.
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Ativista da virada na Geórgia
Por trás da virada do estado da Geórgia na manhã de ontem, que passou de vermelho a azul na contagem dos votos em uma das eleições mais tensas da história dos Estados Unidos, surge o nome de uma mulher. Escritora, empresária e ativista, Stacey Abrams é também uma figura essencial no mapa eleitoral de um estado que, há 28 anos, desde a eleição de Bill Clinton, em 1992, não votava nos democratas.
Advogada tributarista formada na Faculdade de Direito da Yale, Abrams foi responsável por conseguir que 800 mil novos eleitores se registrassem na Geórgia nos últimos dois anos, um esforço que começou depois de perder uma eleição bastante contestada. Em 2018, ela concorreu para governadora, mas foi derrotada por 55 mil votos para o republicano Brian Kemp, então secretário de estado da Geórgia.
De acordo com uma investigação da Associated Press, Kemp teria cancelado o registro de mais de um milhão de eleitores entre 2012 e 2018 e, durante a campanha, congelou os direitos de outros 53 mil, a maioria afro-americanos. Apesar de não ter sido eleita, Abrams angariou mais votos do que qualquer outro concorrente democrata ao governo do estado.
A derrota escancarou um problema comum nos Estados Unidos e fez com que ela tomasse a frente de um movimento para evitar que o mais básico dos direitos civis não fosse negado às minorias. Em 2013, quando era membro da assembleia da Geórgia, Abrams criou o New Georgia Project, com o qual conseguiu registrar 83 mil novos eleitores. Mas, depois de 2018, ela mergulhou no processo, tornou-se uma das mais importantes ativistas pelo direito ao voto e criou o Fair Fight, que angariou quase um milhão de registros eleitorais.
Mudanças
Com o trabalho, Abrams conseguiu triplicar o eleitorado latino e asiático no estado, dobrar a participação de jovens no processo eleitoral e invalidar políticas supressivas que acabavam por excluir das urnas os mais pobres e as minorias ao impor regras draconianas para o alistamento eleitoral. Entre elas, estão exigências de um nome de rua para o registro — o que deixa de fora, por exemplo, os índios norte-americanos que moram em reservas — e exclusão de analfabetos.
Em Voter suppression in U.S. elections ela e outras cinco autoras contam como se dá o processo de exclusão. A ativista também é autora de Our time is now: power, purpose, and the fight for a fair America e Lead from the outside: how to build your future and make real change.
Stacey Abrams também foi um dos nomes cogitados para ser vice de Joe Biden e, agora, é alvo de uma campanha para que ocupe um posto importante no Partido Democrata. Com o Fair Fight, a ativista lançou a base para lutar por eleições mais justas e livres. Parte dessa história é contada em All in: The fight for democracy, da Amazon Prime, documentário sobre o direito ao voto e a supressão, uma realidade que exclui centenas de americanos do processo eleitoral. “A supressão de voto tem tido um papel agressivo e malévolo nunca visto desde Jim Crow”, diz Abrams, no documentário, em referência às leis Jim Crow, responsáveis pela segregação racial nos Estados Unidos até a primeira metade do século 20.