Conexão diplomática

Correio Braziliense
postado em 07/11/2020 00:28
 (crédito: Nathan Howard/AFP)
(crédito: Nathan Howard/AFP)

Roupa lavada em praça pública

As incertezas que ainda cercam o desfecho da eleição presidencial nos EUA — e não eram poucas, ao anoitecer de ontem — não bastam para amenizar a perplexidade com que o resto do mundo acompanha o desenrolar do momento crucial da democracia no país que, no fim das contas, virou o século como parâmetro universal das virtudes e vantagens do sistema político cultivado desde a antiguidade greco-romana. Aferrada a seu processo eleitoral peculiar, que possibilita a vitória de um candidato que não tenha obtido a maioria dos votos populares em escala nacional, a democracia americana se confronta, em especial desde 2000, com o desafio de se manter fiel a raízes bicentenárias e, ao mesmo tempo, responder às exigências de uma sociedade em mutação e de um mundo que perscruta os 360 graus do horizonte em busca de um norte,

É por essa perspectiva que se podem observar, com a mira assestada para além da proclamação dos resultados, os desdobramentos de médio e longo prazo da votação que, segundo os dados disponíveis no fim da tarde de sexta-feira, indica que Donald Trump terá de se conformar com os quatro anos de mandato presidencial conquistados em 2016. Daqui para a frente, o resto do mundo se empenhará em acompanhar a transição de governo em Washington e perscrutar as linhas de ação da nova equipe, a ser montada pelo veterano senador democrata Joe Biden, vice-presidente nos oito anos (2009-2016) de Barack Obama na Casa Branca.

Antes da proclamação do resultado oficial, porém, a potência que liderou o chamado “mundo livre” na Guerra Fria contra o comunismo soviético confronta os próprios demônios. A divisão interna da sociedade, vertical e profunda, se expressa em mais um resultado eleitoral dúbio em termos políticos e duvidoso no sentido estritamente legal.

Em um país que há décadas se expõe, dividido meio a meio, ao mundo que lidera, a eleição encerrada (será?) na última terça-feira oferece um espetáculo de ferocidade inaudita. É o próprio presidente quem alega ser vítima de “um roubo”, e ameaça contestar na Justiça a derrota que, até a noite de ontem, se avizinhava. Seja qual for o desfecho de uma disputa em que os votos depositados nas urnas são apenas uma das variáveis, a imagem internacional do país que colecionou glórias (e influência) pelo papel desempenhado no combate ao nazifascismo, na Segunda Guerra, se vê tingida pela percepção de que, afinal, a escolha popular do governante resulta em batalhas judiciais que pouco têm a ver com a expressão da vontade da maioria.

Espelho meu...

Em 2016, Donald Trump conquistou a Casa Branca graças à maioria que construiu no Colégio Eleitoral, embora tenha somado, na votação popular nacional, 3 milhões de votos a menos que a rival do Partido Democrata, Hillary Clinton. Desta vez, com participação recorde dos eleitores — em um país onde o voto é facultativo, e apesar dos limites impostos pela pandemia —, os 4 milhões de vantagem contabilizados, até ontem, pelo desafiante democrata, Joe Biden, bastaram para contornar as armadilhas de um sistema que observadores consideram arcaico.

Desde 2000, quando o republicano George Bush (filho) superou no Colégio Eleitoral o democrata Al Gore, embora claramente em minoria nos votos populares diretos em soma nacional, os EUA discutem (tardiamente) a revisão de um sistema que tem raízes na Independência (1776) e na Guerra Civil (1865-1869). Novamente, em 2016, Donald Trump construiu maioria no Colégio Eleitoral ainda que tenha ficado 3 milhões de votos atrás de Hillary Clinton na soma nacional dos votos.

Apenas para oferecer um parâmetro: embora improvável, Trump tinha ainda, ontem, caminhos que lhe possibilitariam manter-se na Casa Branca, ainda que amealhasse até ali uma desvantagem de 4 milhões de votos na contagem dos sufrágios populares.

Na telinha

• Esses e outros temas da disputa entre Biden e Trump permeiam o conteúdo da entrevista de que participei, ontem, com o embaixador Rubens Barbosa, em torno das implicações do desfecho da eleição presidencial americana para o Brasil — desde as repercussões mais imediatas da eleição mais inusitada em mais de 200 anos de democracia nos EUA.

• Entre outros temas, o veterano diplomata, que chefiou a representação brasileira em Washington, no fim dos anos 1990, discorre sobre a implicação de um governo democrata para a relação com o país no tema-chave do meio ambiente. Ainda que ressalte a natureza das relações de Estado entre Brasil e EUA, o embaixador observa que um governo democrata em Washington tende a buscar a aproximação com iniciativas multilaterais, como o Acordo de Paris sobre o clima.

• O Brasil de Bolsonaro, cujo governo optou por distanciar-se do tratado, como parte de sua política avessa à diplomacia multilateral, terá pela frente, nos próximos anos, uma administração americana que fará da reinserção dos EUA em processos como o combate às mudanças climáticas um dos seus pilares.

• Naturalmente, a evolução das relações bilaterais ingressa em um processo de mudanças que demandará um ajuste capaz de se produzir ao longo dos próximos anos. Nesse período, o apreço aos cânones democráticos, do lado de cá, tende a ser elemento determinante.

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