Ciência ignorada e divisão racial: a herança de conflitos de Trump

Trump não deixa legados a celebrar. Magnata imprimiu marcas profundas na sociedade, ignorou a ciência, fomentou a divisão racial e distanciou o país da comunidade internacional

Jorge Vasconcellos
postado em 08/11/2020 06:00
O magnata republicano Donald Trump é flagrado por fotógrafos ao chegar à Casa Branca, após partida de golfe, na tarde de ontem: semblante tenso -  (crédito: Andrew Caballero-Reynolds/AFP)
O magnata republicano Donald Trump é flagrado por fotógrafos ao chegar à Casa Branca, após partida de golfe, na tarde de ontem: semblante tenso - (crédito: Andrew Caballero-Reynolds/AFP)

Donald Trump acaba de entrar para a pequena galeria dos presidentes não reeleitos nos Estados Unidos. Desde a Segunda Guerra Mundial, apenas dois inquilinos da Casa Branca não conseguiram receber a confiança dos americanos para exercer um novo mandato: Jimmy Carter e George H.W. Bush. Os quatro anos da era Trump, porém, foram suficientes para deixar, talvez por um longo período, marcas profundas no país, hoje dividido ao meio, distanciado da comunidade internacional e castigado pelos números trágicos da pandemia do coronavírus.

Desde a posse no governo, Trump sempre apresentou-se como um líder atípico, um ícone da antipolítica. Por jamais ter ocupado antes um cargo eletivo ou uma posição de liderança militar, o selo presidencial que acompanha todas as suas aparições públicas ajudou a normalizar um magnata mais conhecido pelos americanos como uma celebridade da televisão.

Ao longo desses quatro anos, como uma obsessão, o republicano abraçou, como uma das metas principais, o desmonte de várias políticas públicas lançadas pelo antecessor, o democrata Barack Obama. Um dos primeiros alvos foi o Obamacare, programa federal de saúde que leva o nome do ex-presidente no apelido. Apesar de não ter conseguido derrubá-lo, Trump o enfraqueceu, cortando subsídios e dando mais liberdade a planos de saúde para aplicarem preços não regulados.

Fomento à energia renovável, preservação de parques federais, limitação à extração de petróleo e gás e o papel ativo no Acordo de Paris também foram agendas atacadas por Trump. Ele cortou o financiamento da Agência de Proteção Ambiental, assinou medidas pró-indústria do carvão, aliviou leis para extração e abandonou o pacto.

O republicano também conduziu os EUA a uma situação de distanciamento da comunidade internacional, ao rejeitar parcerias econômicas multilaterais. Sob a alegação de fortalecer postos de trabalho dentro do país, Trump decidiu, logo no início do mandato, sair da Parceria Transpacífico (TPP) e ameaçou a continuidade do Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta). Defendeu foco maior em acordos bilaterais, com parcerias “mais justas” para os Estados Unidos.

O endurecimento das regras de imigração foi outro legado de Trump, um presidente que levou o país ao shutdown (paralisação) por condicionar um acordo com o Congresso à inclusão, no orçamento, de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México. O resultado mais triste dessa política de “tolerância zero” na imigração é a existência de pelo menos 545 crianças imigrantes que foram retidas pela administração Trump e que ainda estão separadas dos pais.

Na questão dos direitos civis, Trump adotou uma postura condescendente para com movimentos declaradamente racistas. Mais recentemente, após a explosão de protestos pela morte de George Floyd, um homem negro, por um policial branco, o republicano não apenas negou a existência do racismo na polícia como atacou as manifestações antirracistas. O presidente classificou-as de “terrorismo doméstico”.

Racismo

Trump trouxe a questão racial para a campanha à reeleição, ao alertar que, caso o democrata Joe Biden fosse eleito presidente, o país seria tomado pela desordem e por protestos violentos. Nas urnas, porém, foi fortemente cobrado por boa parte dos eleitores, não apenas os negros, por ter aprofundado ainda mais a divisão do país.

O movimento “Black Lives Matter” (“Vidas negras importam”) foi decisivo para conscientizar a população sobre os malefícios do racismo e para atrair uma maior participação dos negros nas eleições — o voto não é obrigatório nos EUA. Na corrida à Casa Branca, a vitória de Biden na Geórgia, um tradicional reduto eleitoral republicano, é vista como um triunfo também do movimento antirracista.

Outro fator decisivo para a derrocada de Trump foi a forma como ele tratou a pandemia da covid-19, ao menosprezar a gravidade da doença e virar as costas para a ciência, o que levou o país à condição de campeão de casos (9,8 milhões) e de mortes (236,8 mil) provocadas pelo novo coronavírus.

“De tudo o que todos sabemos sobre as atrocidades contra as minorias e as sandices, o egocentrismo, a malevolência e a desastrada política externa, na minha opinião, o mais grave foi ataque em massa às instituições científicas, e às agências de saúde pública e de meio ambiente. Este presidente jogou a população contra os educadores, a imprensa e os próprios técnicos das instituições públicas na área de saúde, tecnologia e meio ambiente”, disse ao Correio a pernambucana Sandra Buarque, 50 anos, cidadã americana e moradora do Golfo do México, no estado do Alabama.


Ponto crítico

Por Lincoln Mitchell

“O legado de Trump será de quatro anos tentando destruir a América, colocando as pessoas umas contra as outras, propagando teorias bizarras e mentindo consistentemente. O manuseio incorreto da crise da covid-19 levará a centenas de milhares de mortes evitáveis e a uma desaceleração da economia, que afetará os EUA por uma geração. Ele será lembrado como um palhaço racista. Sua relação com Vladimir Putin (líder russo) nunca foi explicada. Por décadas, será símbolo de tudo o que é odiado na América: a arrogância, a ignorância e a intolerância. Este poderia ser um grande país. Os pais americanos apontarão para ele como um exemplo para os filhos do que eles não deveriam ser.”

Cientista político e professor da Columbia University (Nova York)

 

Por Juscelino Filgueiras Colares

“Eu destaco o ganho de 7,2 milhões de empregos nesses quatro anos, que economistas, como Paul Krugman (laureado com o Nobel), diziam ser impossível. Vimos novos 420 mil postos de trabalho no setor manufatureiro, os menores índices de desemprego (3,7%) do pós-guerra, taxas recordes de emprego entre todas as minorias raciais e as mulheres. Depois da covid-19, com a elevação do desemprego a mais de 15%, detectou-se uma recuperação econômica, com aumento de 33% do Produto Interno Bruto (PIB) e redução de 6,7% do desemprego. Também cito a reforma das leis penais e processuais, que reduziram a desigualdade no apenamento de negros e de minorias étnicas.”

Cientista político e professor de direito da Case Western Reserve University (Cleveland, Ohio)

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