É a concretização de um sonho de décadas. Em sua longa ambição de chegar ao comando da Casa Branca, que incluiu duas tentativas malsucedidas, Joe Biden apostou na promessa de unificar os Estados Unidos e na convicção de que é a pessoa ideal para mudar o estado de espírito dos EUA, passando da “raiva e suspeita à dignidade e respeito”. A fórmula deu certo. Após quase meio século em Washington, o veterano democrata, que entrou para a política nacional aos 29 anos, sagrou-se nas urnas o 46º presidente do país, com votação recorde. Em 20 de janeiro de 2021, ao tomar posse, Biden estará com 78 anos e, assim, será a pessoa mais velha a assumir a chefia do governo americano.
De origem modesta e personalidade amigável, Joe Biden nasceu em uma família irlandesa muito católica. Ao longo de toda a campanha eleitoral, foi uma opção diametralmente oposta a Donald Trump. Novato no cenário político, de temperamento exultante, o atual presidente dos EUA, três anos mais novo, nasceu em um círculo de privilégios.
Nascido em Scranton, na Pensilvânia, Joseph Robinette Biden Jr. formou-se advogado em 1969. No ano seguinte, num 7 de novembro, foi eleito para o Conselho do condado de New Castle. Dois anos depois, em surpreendente eleição, desembarcou em Washington para assumir um mandato como senador — o sexto mais jovem da história norte-americana — pelo estado de Delaware, para onde mudou-se com a família aos 10 anos e fixou residência até hoje.
Tragédias
Apenas um mês depois da eleição, porém, uma tragédia abalou sua vida — a primeira de várias. Na véspera de Natal, sua primeira esposa, Neilia Hunter, e a filha de 1 ano morreram em um acidente de carro. Seus dois filhos ficaram gravemente feridos. O mais velho, Beau, morreu, vítima de câncer, em 2015, aos 46 anos.
A perda do primogênito foi um golpe do qual Biden até hoje não se recompôs. Ao falar sobre a dor provocada pelo falecimento de Beau, que seguiu carreira política e foi eleito procurador-geral de Delaware, o presidente eleito admitiu que é um pesar que “nunca se vai”. O episódio teve um impacto tão forte sobre o democrata que o impediu de tentar a candidatura à Presidência em 2016. Em janeiro, Biden destacou a grande influência de Beau em sua vida. “A cada manhã, eu levanto e pergunto: Ele estaria orgulhoso de mim?”, contou.
De certa forma, as tragédias aproximaram Biden dos americanos e ajudaram a cimentar a empatia com a opinião pública, assim como suas habilidades polivalentes. Da mesma forma que sorri em um auditório lotado de estudantes universitários, o democrata é capaz de conectar-se com operários de áreas em crise econômica ou de expressar duras críticas aos rivais.
Essa característica, porém, ficou escondida durante a corrida presidencial deste ano, em razão da crise do coronavírus, que freou a campanha presencial de Biden e o deixou confinado em casa, de onde começou a sair, ainda assim comedidamente, poucas vezes nas últimas semanas. O comportamento precavido arrancou críticas, em tom de piada, de Trump, que se arriscou sem máscaras em meio a aglomerações. A poucas semanas da votação, o presidente contraiu coronavírus, passou três dias internado, mas não se deteve. E, ao voltar à rotina, continuou a provocar Biden, que manteve os cuidados de sempre.
Desafios
Para ser o adversário de Trump, Biden enfrentou resistências. Os críticos e os próprios democratas questionaram sua idade avançada e a sua propensão a gafes, muito explorada por Trump, que costuma chamá-lo de “Joe, o dorminhoco”. Também o acusa de sofrer uma deterioração cognitiva. Biden tentou responder aos ataques e, em um momento de frustração depois que o presidente o interrompeu diversas vezes no primeiro debate da campanha, questionou exasperado: “Cara, você não vai se calar?”.
No próprio partido, teve que transpor obstáculos. Quase não conseguiu a designação democrata. Apesar de ter iniciado a disputa como favorito, muitos o descartaram por ser considerado velho, muito moderado e sua campanha parecia destinada ao desastre após as primeiras votações das primárias, vencidas por Bernie Sanders. Mas, com a primária da Carolina do Sul e o apoio dos eleitores negros, ele retornou, com determinação, à disputa.
Foi a terceira vez que Biden intentou em chegar à Casa Branca. Na tentativa de 1988, desistiu das primárias depois da vergonha provocada pela descoberta de que havia plagiado um discurso. Dez anos depois, também foi mal e recebeu menos 1% dos votos no caucus de Iowa, que marca o início da corrida.
Acabou escolhido como candidato a vice de Obama, para quem passou a ser o “guerreiro feliz dos Estados Unidos”. Após a vitória, Obama o designou coordenador da recuperação da profunda recessão que afetava o país. Os dois discordavam sobre a guerra no Afeganistão, e Biden foi contrário ao aumento do número de tropas.
Em grande medida, a mensagem de Biden está associada ao estilo moderado exibido nos oito anos do governo de Obama. Porém, durante a campanha prometeu que, como presidente, adotará posturas mais progressistas nas áreas da mudança climática, justiça racial e alívio da dívida estudantil.
Sem roteiro
Nas três décadas em que exerceu seis mandatos no Senado, Joe Biden foi conhecido pelas alianças improváveis e, assim como Trump, por sua propensão a sair do roteiro. Suas escolhas durante a longa carreira provocaram críticas dos democratas, incluindo de sua candidata a vice, Kamala Harris, que recordou, durante as primárias deste ano, a oposição do agora presidente eleito a um sistema contra a segregação nas escolas que consistia em levar crianças negras para colégios predominantemente brancos.
Biden também foi muito criticado por ajudar na redação de uma lei de 1994 que muitos democratas acreditam que provocou a detenção de uma quantidade desproporcional de cidadãos negros. Recentemente, ele reconheceu que a iniciativa foi um erro.
Outros episódios no Senado também jogaram uma sombra sobre sua campanha, como o apoio à guerra do Iraque, em 2003, e seu papel na audiência de confirmação do juiz da Suprema Corte Clarence Thomas, em 1991, quando foi questionado sobre a maneira como abordou as acusações de assédio sexual contra o magistrado. No ano passado, uma polêmica sobre sua tendência de tocar as mulheres também abalou a campanha. Biden pediu desculpas e prometeu se corrigir.
A vida pessoal e as histórias familiares de Biden estão conectadas de tal maneira como seu discurso político que se transformaram em parte de sua imagem. O acidente de 1972, em que perdeu a esposa e a filha mais nova, e no qual os filhos Beau e Hunter — na época, com 4 e 2 anos, respectivamente — ficaram feridos passou a integrar sua mitologia, depois que prestou juramento como senador do hospital em que as crianças se recuperavam.
Em 1975, Joe Biden conheceu a segunda esposa, Jill Jacobs, uma professora com quem se casou dois anos depois. O casal tem uma filha, Ashley. Enquanto Beau seguiu a carreira política, Hunter tornou-se um advogado que se dedica ao lobby, seguindo um caminho próprio. Ele recebeu um salário elevado como parte da diretoria de uma empresa de gás ucraniana quando o pai era vice-presidente, o que rendeu acusações de corrupção.
No ano passado, as pressões de Trump para que a Ucrânia investigasse o democrata renderam um processo de impeachment ao presidente na Câmara de Representantes. A ação terminou com a absolvição no Senado, em fevereiro, dando munição ao republicano. Hunter não recebeu nenhuma acusação, mas Trump cita a o assunto sempre que possível.
Conselheiro
Muito ligado à família, Biden teve a vida radicalmente alterada aos 10 anos, quando o pai, um vendedor de carros, perdeu o emprego, no início da década de 1950. Isso determinou uma mudança da Pensilvânia para o estado vizinho de Delaware. “Meu pai sempre dizia: ‘Campeão, quando alguém te acerta, você tem que ficar de pé de imediato’”, conta o democrata.
Sempre demonstrou orgulho de sua origem de operário e de ter superado a gagueira. Até hoje, dá conselhos aos jovens que sofrem desse distúrbio. Em suas caminhadas, ainda costuma parar para cumprimentar os bombeiros que encontra ao lembrar que foram eles que “salvaram a vida de seus meninos” no acidente de 1972.
Em 1988, bombeiros salvaram sua vida quando o levaram para o hospital depois de sofrer um aneurisma. Alguns afirmam que o estado clínico de Biden era tão grave que um padre foi chamado para administrar a extrema-unção.
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Também um "cidadão brasiliense"
Joe Biden é praticamente “cidadão brasileiro e brasiliense”. Esteve três vezes no país. Em todas as viagens, passou pela capital no papel de vice de Barack Obama para encontros com a então chefe de Estado, Dilma Rousseff. O primeiro, no Palácio do Planalto, três dias depois de visitar o Rio de Janeiro. O segundo, durante a Copa do Mundo de 2014. Seis meses depois, apareceu no Palácio do Itamaraty na posse do segundo mandato da petista.
Na passagem pelo Rio, Biden elevou o patamar do país: “Vocês não podem mais dizer que são uma nação em desenvolvimento. Vocês se desenvolveram. E posso dizer pela minha experiência que, com isso, vem a responsabilidade de falar em todo o mundo, de se posicionar”, cobrou, no Pier Mauá, às margens da Baía de Guanabara. Da Cidade Maravilhosa, veio a Brasília convidar Dilma, pessoalmente, para uma visita à Casa Branca.
“Agora, compreendo porque o presidente Obama acha que a presidenta Dilma é uma parceira tão boa. Raramente se faz uma visita de Estado aos Estados Unidos”, elogiou, enquanto a esposa e as netas conheciam o Lago Paranoá e aproveitavam a piscina do hotel em que ficaram hospedados no DF.
Frequente nas Copas do Mundo, o democrata foi a Natal, em 2014, prestigiar a estreia dos EUA contra Gana. Chegou atrasado à Arena das Dunas. Perdeu o gol relâmpago marcado por Dempsey, aos 28 segundos. De lá, embarcou rumo a Brasília para conversar com Dilma sobre espionagem. Na época, vazou a notícia de que agências de inteligência norte-americanas monitoraram cidadãos e autoridades brasileiras, entre elas, a presidente.
Era a primeira vez que um representante do governo norte-americano vinha ao Brasil desde que documentos sigilosos vazados pelo ex-prestador de serviços da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), Edward Snowden, revelaram a espionagem dos EUA a alguns países e seus líderes, incluindo Dilma. “Disse a ela que o presidente Obama, quando ficou sabendo das revelações, resolveu fazer um exame completo e nós mudamos nossos procedimentos. Estamos dando novo enfoque a essas questões”, relatou, sustentando discurso em defesa de uma internet segura.
Seis meses depois, Joe Biden bateu o ponto, em Brasília, para participar da cerimônia de posse da presidente reeleita. À época, ela havia derrotado Aécio Neves nas eleições e recebeu o vice norte-americano no Palácio do Itamaraty. No encontro, Dilma e Joe Biden conversaram sobre a situação em Cuba. O democrata pediu ajuda à presidenta no relacionamento com Havana. EUA e Cuba haviam acabado de retomar relações diplomáticas.
“Não quero voltar para casa. Queria ficar mais tempo aqui e aproveitar a hospitalidade”
Joe Biden, na passagem por Brasília, em 2013