PERU

Merino assume país em crise

Em meio a protestos e a reações negativas do mercado financeiro, o chefe do Legislativo toma posse, horas após a destituição de Martín Vizcarra, com o compromisso de realizar novas eleições em abril e críticas à política de enfrentamento à covid-19

Correio Braziliense
postado em 10/11/2020 23:38
 (crédito: Cesar Von Bancels/AFP)
(crédito: Cesar Von Bancels/AFP)


Um novo e breve capítulo da política do Peru foi aberto, ontem, num cenário de grande incerteza. Com o impeachment de Martín Vizcarra, destituído na véspera, o presidente do Congresso, Manuel Merino, assumiu o comando do país andino, em meio a protestos nas ruas e aos temores do mercado. Praticamente desconhecido dos peruanos, a despeito de chefiar o Legislativo, Merino deve permanecer no cargo até 28 de julho de 2021. Embora discreto, ele também tem seu nome ligado a escândalos.
Aos 59 anos, o político de centro direita é o terceiro presidente do Peru desde 2016, um reflexo da fragilidade institucional que caracteriza o país desde sua independência em 1821. “Juro por Deus, pela pátria e por todos os peruanos que exercerei fielmente”, declarou, ao receber a faixa presidencial, poucas horas depois da deposição de Vizcarra pelo Congresso, por “incapacidade moral”. Foi o segundo julgamento político contra ele em menos de dois meses.
Naquele momento, protestos se multiplicavam contra a destituição de Vizcarra nas ruas próximas à sede do Congresso, em Lima, com confrontos entre manifestantes e policiais, além de panelaços em vários bairros da capital. Iniciadas ainda na noite de segunda-feira, quando da aprovação do impeachment de Vizcarra, manifestações também foram organizadas em outras cidades, como Arequipa e Cusco.

Sucessão

“Nosso primeiro compromisso (...) é respeitar o processo eleitoral em curso. Ninguém pode mudar a data das eleições convocadas para 11 de abril de 2021”, asseverou Merino, já com a faixa presidencial bicolor no peito. No primeiro discurso perante o Congresso, ele prometeu “imparcialidade em todos os processos eleitorais”.
Manuel Merino também negou ter comprado votos para remover Vizcarra, pediu a unidade nacional e prometeu que deixará o cargo em 28 de julho de 2021, dia em que termina o atual mandato do governo.
Além disso, criticou a forma que o governo Vizcarra conduziu as ações de enfrentamento da pandemia. “É o país com a pior gestão da covid-19”, enfatizou. Com quase 33 milhões de habitantes, o Peru acumula 923 mil infecções e cerca de 35 mil mortes — é a segunda nação com a maior taxa de mortalidade do mundo pela doença em relação à sua população (105,9 por 100 mil habitantes), segundo Johns Hopkins University nos Estados Unidos, um centro de referência.
Encerrado o discurso, Merino seguiu para o palácio do governo, a poucos quarteirões do Congresso, onde recebeu honras de um batalhão de cavalaria do Exército. Nos oito meses de governo, a principal missão do legislador da região norte de Tumbes, na fronteira com o Equador, serão mesmo, de acordo com analistas, assegurar a transição democrática no bicentenário da independência peruana. Para isso, terá que desarmar resistências, tanto no campo político quanto econômico.
Ao longo de toda a carreira política, Manuel Merino integrou a Ação Popular (centro-direita), partido fundado pelo ex-presidente Fernando Belaúnde (1963-1968 e 1980-1985). No entanto, os líderes da legenda pareceram divididos sobre a conveniência de remover Vizcarra em meio à pandemia e recessão econômica, enquanto os mercados expressaram temor de que o Peru abandone a política de manutenção do equilíbrio macroeconômico.
“O Congresso vem adotando leis fortemente prejudiciais em termos econômicos”, ressaltou ex-ministro da Economia e Finanças Alonso Segura, explicando os temores do mercado. Ontem, a moeda peruana apresentou desvalorização próxima a 1% em relação ao dólar e em relação ao fechamento do dia anterior. Os títulos do governo em dólares também caíram.

Sem resistência

Vizcarra foi deposto com 105 votos — 18 além dos 87 exigidos. Dezenove parlamentares votaram contra o impeachment e quatro se abstiveram. O ex-presidente, também de centro-direita, mas sem partido ou bancada legislativa, descartou resistir à renúncia com recursos judiciais e deixou o palácio do governo para sua residência privada logo após a deliberação.
O Congresso tomou a decisão após denúncias de que Vizcarra teria recebido propina quando era governador da região sul de Moquegua em 2014. Ele nega as acusações. O julgamento foi uma espécie de repetição — mas com um desfecho diferente — de outro processo que o então presidente venceu em 18 de setembro.
“Saio do Palácio do Governo como entrei há dois anos e oito meses: de cabeça erguida”, declarou à imprensa, rodeado por seus ministros, no pátio da casa do Governo. “Estou saindo com a consciência limpa e com o dever cumprido”, acrescentou Vizcarra, que contou com níveis recordes de popularidade em seus 32 meses de mandato. Para o arcebispo de Lima, Carlos Castillo, faltou “senso de proporção” ao Congresso na decisão. “É algo muito sério”, observou.
A deposição de Vizcarra marca mais um momento da crise política peruana. Todos os ex-presidentes vivos do Peru, que governaram após o fim do regime militar, em 1980, enfrentam processos judiciais por corrupção. O antecessor, Pedro Pablo Kuczysnki (2016-2018), não conseguiu cumprir seu mandato por ter sido forçado a renunciar por pressão do Parlamento. Alan García cometeu suicídio, em Lima, aos 69 anos, antes de ser preso sob investigação por corrupção no caso Odebrecht, em abril do ano passado.
“O Peru sai institucionalmente mais fraco. Merino será um presidente fraco. Esse é o cenário em um contexto de eleições gerais (em abril de 2021) com uma pandemia”, disse o analista político Augusto Álvarez Rodrich. “É um fato político que abre portas para uma situação de incerteza”, enfatizou o analista Fernando Tuesta, em entrevista à emissora pública TV Peru, acrescentando: “É uma situação claramente preocupante para dizer o mínimo.”

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  • Simpatizante de Vizcarra enfrenta policiais em Lima: forte apoio popular
    Simpatizante de Vizcarra enfrenta policiais em Lima: forte apoio popular Foto: Fotos: Ernesto Benavides/AFP
  • "Saio do Palácio do Governo como entrei há dois anos e oito meses: de cabeça erguida" Martín Vizcarra, presidente deposto Foto: Ernesto Benavides/AFP

Legitimidade contestada

Martín Vizcarra aceitou, sem emitir qualquer resistência, a deliberação do Congresso, que cassou seu mandato presidencial. No entanto, após Manuel Merino assumir o governo, afirmou que faltam ao sucessor condições para governar o país. “Estou preocupado, como muitos peruanos, porque uma autoridade para exercer sua autoridade precisa de dois princípios e condições básicas: legalidade e legitimidade”, afirmou Vizcarra, destituído “incapacidade moral”.
“A legalidade está em questão porque o Tribunal Constitucional ainda não se manifestou e a legitimidade é dada pelo povo”, disse o popular ex-presidente de centro-direita, em sua residência particular, em Lima. Enquanto Vizcarra, fazia o pronunciamento, nas ruas e praças do centro histórico da capital peruana, a polícia reprimia com gás lacrimogêneo como forma de dispersar inúmeros grupos de manifestantes.
O Tribunal Constitucional aguarda a resolução de um processo, em dezembro, para definir o alcance da “incapacidade moral” que Vizcarra havia apresentado em setembro, quando Merino, também de centro-direita, lançou contra ele um primeiro pedido de impeachment, que não deu certo. No discurso de ontem, o novo presidente negou ter tentado articular a deposição de Vizcarra, com suposta compra de votos.
Vizcarra prometeu colaborar com o Ministério Público nas investigações das denúncias de ter recebido propina em 2014, quando era governador da região sul de Moquegua, acusações que nega e que foram o fundamento do processo que provocou seu impeachment.
Sobre seu futuro, Vizcarra, que é engenheiro e empresário do ramo da construção, afirmou que retomará sua atividade profissional. “Obviamente, eu queria estar (na Presidência) até o prazo estabelecido pela Constituição, em 28 de julho de 2021. Mas parece que, finalmente, a democracia foi sustentada pela ditadura dos votos do Congresso”, acrescentou o ex-presidente, de 57 anos, sem especificar se retornará a Moquegua, sua cidade natal, localizada no sul do país.
Horas antes, ao deixar o palácio do governo, ele afirmara: “Não entrarei com nenhuma ação legal para resistir à destituição. Não quero que, de forma alguma, possa ser entendido que meu espírito de serviço ao povo tenha sido apenas uma vontade de exercer o poder”, assinalou.

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