POPULISMO AUTORITÁRIO NOS EUA
A arrastada confusão em torno do resultado das eleições americanas pode ser vista como psicanálise pura: narcisismo ferido de quem tem baixa tolerância à frustração. No fim das contas, as instituições vão funcionar. Mas, não é só isso. A desilusão existe porque a ela precedeu uma ilusão. Iludidos e desiludidos passaram a conhecer mais seus ídolos. Como ocorre com a desmistificação que é ver o prefeito da política de “tolerância zero”, em Nova York, fazer o papel de advogado intolerante diante da eleição perdida.
O The Wall Street Journal, que é o mais respeitado dos jornais simpáticos a Trump, relatou a preocupação de que suas chicanas estejam dando falsas esperanças a milhões de seus apoiadores. No entanto, a preocupação não é dar falsas esperanças; e, sim, o que se propõe fazer com elas. Trump coloca-se claramente aberto a uma aventura autoritária. Seu grupo não liga se ganhou ou não a eleição. Adiciona-se a isso a peculiaridade de alguém que construiu sua vida por meio do litígio e sabe que, após a presidência, corre o risco de perder bastante coisa na Justiça.
Sua intuição é de que basta que centros de poder nos estados resolvam embarcar na aventura conspiratória para melar o jogo. É aí que a providência tem bloqueado a audácia antidemocrática. Seu grupo tem minguado, desconfiado que uma aventura autoritária teria riscos demais.
A porta é cada vez mais estreita, mas segue aberta. Na terça-feira, Nevada e, amanhã, Michigan e Pensilvânia certificarão seus resultados. Ao confirmarem as urnas, tornarão a porta ainda mais estreita. Mas ela só se fecha mesmo quando for jogada a toalha. Provavelmente entre 14 de dezembro, quando o Colégio Eleitoral declara seus votos, e em 6 de janeiro, quando os votos são lidos no Congresso. Mas, a característica ruim da estratégia “Vai que cola?” é a de perpetuar a caravana de insensatez, em que o pessoal torna-se perigoso.
De todo modo, é surpreendente que existam, de fato, cenários traçados sobre o que os EUA vão fazer, caso Trump decida chegar a 20 de janeiro sem conceder a derrota. É a primeira experimentação na história de um populismo carismático autoritário nos EUA. Encontrou, de fato, milhões de apoiadores. Num país com tanto poder e orgulho, o viés autoritário sempre foi presente. Mas há uma fórmula bem bolada de direcionar esse viés para o exterior. Trump o trouxe para casa. E é dessa perspectiva que devemos entender por que o flerte autoritário tornou-se real dentro dos EUA.
Em 1973, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Brasil cresceu 11,3%. Era o fim do milagre econômico. Na seara da observação internacional do Brasil, foi publicado um estudo do espanhol nascido na Alemanha e radicado nos EUA, Juan Linz, que deu a dica de que a trajetória brasileira estava encaminhada à mudança.
Linz sugeriu que o Brasil vivia “uma situação autoritária e não um regime autoritário,” e que não havia condições para que o regime se institucionalizasse de maneira autoritária. À época, o general Golbery trabalhava para uma empresa norte-americana e obteve o estudo de Linz antes dele ser publicado.
Em parte, isso compõe algo que se chama reflexividade, mas o fato é que o texto impressionou Golbery, o qual veio planejar a abertura política controlada. Linz disse que os EUA “regularmente criam as condições para o autoritarismo em outros lugares, mas, ao mesmo tempo, contribuem para sua erosão.”
O que existe de curioso no fenômeno atual é o flerte tolerado com a possibilidade de uma situação autoritária nos EUA. Uma tentativa de mobilização populista que gere o apoio necessário para manter o país caminhando com sua dupla face: a condição de país rico com grande desigualdade social. Ainda que faltem as condições para virar regime autoritário, sem ajuste de conduta urgente a coisa vai ficar ali, fermentando.
A reação a isso acelera a necessidade de deslegitimação de flertes autoritários, ao menos no Hemisfério Ocidental. Não dá mais para ter dois pesos e duas medidas em relação à democracia. A complexidade do planeta está acelerando a aposta em populismos, nacionalismos e líderes carismáticos mais do que em democratas.
A explicação mais corrente para o fenômeno é o impasse sobre o que fazer da desigualdade. Os EUA têm uma renda semelhante, ou maior, do que a da Europa Ocidental, mas níveis de desigualdade semelhantes à Rússia e à China, caminhando rumo ao Brasil. Para alguns observadores, os EUA somente manterão esse patamar de desigualdade com um pouco mais de medidas estatais russas ou chinesas acrescidas de violência policial e do padrão corrupto da autoridade brasileira.
Ninguém sabe ainda ao certo como o grupo de Joe Biden vai tratar a questão da democracia entre aliados. E quais serão seus principais parceiros nesta luta contra o populismo carismático autoritário que continua em moda no mundo.
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