EUROPA

França: Marcha das Liberdades são marcadas por confrontos violentos

Dezenas de milhares de pessoas saem às ruas de 70 cidades para protestar contra projeto de lei que pune com prisão e multa quem fotografar ou filmar policiais. Em Paris, manifestantes queimam carros e banco e entram em choque com agentes

Rodrigo Craveiro
postado em 29/11/2020 06:00
 (crédito: AFP / Alain JOCARD)
(crédito: AFP / Alain JOCARD)

Carros em chamas, nuvens de gás lacrimogêneo, pedras e fogos de artifícios transformados em armas, uma agência do Banque de France incendiada. O centro de Paris transformou-se, ontem, em um campo de batalha entre manifestantes e forças de segurança. Em 70 cidades da França, a chamada “Marcha das Liberdades” reuniu 133 mil pessoas, segundo o Ministério do Interior, e 500 mil, na contagem dos organizadores.

Na capital, pelo menos 46 mil ativistas tomaram as ruas. Os protestos foram motivados pelo polêmico projeto da Lei de Segurança Global, considerado por críticos como uma espécie de mordaça, por supostamente violar os direitos civis e a liberdade de expressão.

Um dos artigos mais controversos, o de número 24, estabelece pena de até um ano de prisão e multa máxima de 45 mil euros (cerca de R$ 287,5 mil) “pela disseminação, por quaisquer meios, com o objetivo de alvejar ou lesar sua integridade física ou psicológica, a imagem do rosto ou qualquer elemento de identificação do agente de polícia nacional ou membro da Gendarmerie, quando engajado em uma operação”. O artigo 21, por sua vez, concede aos policiais o direito de filmar e fotografar civis.

Até o fechamento desta edição, as autoridades confirmavam 46 manifestantes presos e 37 policiais feridos, 23 deles em Paris. O repórter fotográfico sírio Ameer Al-Halbi foi golpeado no rosto com um cassetete e hospitalizado. Christophe Deloire, secretário-geral da organização não governamental Repórteres sem Fronteiras, classificou a agressão como “inaceitável” e lembrou que Ameer chegou à França na condição de refugiado. “A terra dos direitos humanos não deveria ameaçá-lo, mas protegê-lo”, afirmou. A revolta presente nas ruas, ontem, foi impulsionada pelo espancamento do produtor musical negro Michel Zecler, por parte de quatro policiais. O flagrante, captado pelas câmeras de segurança, viralizou nas redes sociais e levou o presidente Emmanuel Macron a admitir “vergonha” ante o racismo.

A editora educacional Élise M. (não quis ter o sobrenome divulgado), 37 anos, disse ao Correio que participou das manifestações de ontem. “Eu fiquei mais na parte de trás do protesto, por ser considerada mais segura. O que está ocorrendo na França é tão preocupante, que eu me senti forçada a reagir”, desabafou. “Os membros da Assembleia Nacional Francesa, que pertencem ao mesmo partido do presidente Emmanuel Macron, apresentaram um projeto de lei que confere poder excessivo à polícia. Ele permite o uso de drones (artigo 22) nas manifestações e a prisão de pessoas que filmarem policiais de forma mal-intencioanada. Quem pode determinar as más intenções de alguém?”, ironizou.

Élise teme que, caso aprovada, a nova lei também implique na detenção sistemática de jornalistas, que ficariam intimidados em filmar a ação da polícia. “Nos últimos dias, temos visto muitos agentes espancarem ou torturarem pessoas. Eles não precisam de mais chances de machucar os cidadãos. Um dos artigos da lei vai autorizar o policial a manter sua arma mesmo quando estiver de folga ou fora do horário de trabalho. Imagine que ‘incidentes horrorosos’ poderiam ocorrer”, desabafou a manifestante.

Cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris, em Paris), Jean-Yves Camus admitiu ao Correio que o artigo 24 é, de longe, o mais polêmico. “Há dois lados da moeda. Por um lado, é verdade que a lei dificultaria aos jornalistas, ou mesmo aos cidadãos comuns, documentarem a brutalidade policial. Por outro lado, temos casos de ativistas de extrema-esquerda que postam na internet fotos de policias, às vezes, até com seus nomes, unidades e endereços de residência. Radicais islâmicos podem usar a mesma técnica, assim como gangues de rua. Esse problema precisa ser resolvido”, disse.

O ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, criticou o vandalismo. “Trinta e sete policiais foram feridos. Eu condeno, uma vez mais, a violência inaceitável contra a polícia”, escreveu no Twitter.

“É o povo da liberdade que marchou em toda a França para dizer ao governo que não quer sua lei de Segurança Global, que se nega à vigilância generalizada e aos aviões teleguiados, que deseja poder filmar e retransmitir as intervenções das forças da polícia”, explicaram os organizadores da Marcha das Liberdades, por meio de um comunicado à imprensa.

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“O projeto de lei emanou de membros da maioria de Emmanuel Macron na Assembleia Nacional Francesa, não do governo. A versão inicial do texto não continha o polêmico artigo, adicionado depois da pressão do governo. Como resultado, existe uma cisão dentro do Em Marcha!, o partido de Macron. Essa cisão também é motivada pela liberdade de ação da maioria no parlamento. O fato de o ministro do Interior ser proveniente do Partido Conservador, de Nicolas Sarkozy, aumenta a preocupação de que o governo esteja se mudando para a direita.”

Jean-Yves Camus, cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris, em Paris)

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