DIREITOS HUMANOS

ONU alerta que guerra no Iêmen pode provocar uma fome histórica na população

António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, alerta para escassez alimentar mais grave das últimas décadas em país afetado pela guerra civil. Ativistas culpam boicote imposto pelos norte-americanos e britânicos

Uma guerra esquecida está prestes a provocar uma catástrofe alimentar, no Iêmen, se a comunidade internacional não agir com urgência. “O Iêmen está agora em perigo iminente da pior fome que o mundo viu em décadas. Na ausência de ação imediata, milhões de vidas podem ser perdidas”, advertiu o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. De acordo com ele, o país enfrenta uma redução drástica no financiamento para a operação de ajuda coordenada, em comparação com os dois últimos anos. Guterres também citou a instabilidade do rial — a moeda iemenita —, além de obstáculos impostos pelos poderosos e pelos rebeldes hutis ao trabalho das agências humanitárias. A situação é agravada pela praga de gafanhotos e pelas enchentes. Desde setembro de 2014, o Iêmen é palco de uma sangrenta guerra civil travada por insurgentes separatistas huthis, apoiados pelo Irã, e as forças do presidente Abd Rabo Mansur Hadi, que contam com o apoio de uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita.

“Eu exorto todos aqueles com influência a agirem com urgência sobre essas questões para evitar a catástrofe”, disse Guterres. “Também peço a todos que evitem tomarem qualquer ação que possa piorar a situação há terrível”, acescentou. O secretário-geral da ONU advertiu que existe o risco de uma tragédia que implicaria não somente as mortes, mas também “consequências que vão reverberar indefinidamente no futuro”. Em conversa com jornalistas, Guterres defendeu o multilateralismo como forma de resolver “uma situação muito frágil”. “Acreditamos que toda iniciativa unilateral não seria provavelmente positiva. Não acredito que seja necessário fazer esse barco virar”, explicou o presidente.

As estatísticas atestam uma tragédia no Iêmen: 80% da população, ou 24 milhões de pessoas, precisam de ajuda humanitária urgente e 10 milhões passam fome. Ao fim de 2019, a guerra tinha matado 230 mil iemenitas, incluindo 7.500 ciranças. Pelo menos 3,6 milhões de cidadãos foram expulsos de suas casas, 155 mil no primeiro semestre de 2020.

“A guerra roubou tudo do meu país... As crianças e seu futuro estão em risco, com mais de 100 escolas destruídas”, lamentou ao Correio o designer gráfico e repórter freelancer Ahmed Abdhullah Jahaf, 30 anos, morador de Sanaa. “A principal razão para a fome é o bloqueio imposto pela coalizão saudita, com o apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido. A crise humanitária, o cólera, o coronavírus, o alto índice de desemprego, os altos preços dos produtos e a escassez de medicamentos tornam o quadro ainda mais grave. Imagine você viver em um local sem nenhum serviço. A eletricidade está com problemas desde 2015, e as pessoas usam energia solar, que é muito cara.”

Economia

Diretora-executiva da Organização Entesaf pelos Direitos das Mulheres e das Crianças do Iêmen, Noah Jahaf, 36, disse à reportagem que o país vive “uma situação humanitária horrível”. “Por quase seis anos, o Iêmen foi sitiado. Há muitos civis mortos pelos aviões de guerra da coalizão e pelo cerco”, comentou. “Esse bloqueio levou a danos e à deterioração da economia. Muitos projetos pararam, assim como negócios. Isso tudo inflacionou os preços das mercadorias, o que provocou um desastre real para os cidadãos.” De acordo com ela, apesar de chegar a Sanaa, a ajuda internacional é insuficiente para aliviar o sofrimento das pessoas.

Na última terça-feira, a ONU liberou um montante de US$ 100 milhões para tentar evitar que sete países fossem afetados pela fome — acelerada pela pandemia da covid-19. Entre os países contemplados pela assistência financeira, estão o Iêmen (US$ 30 milhões) e a Etiópia (US$ 20 milhões) (leia abaixo).

» Vozes iemenitas

Ahmed Abdullah Jahaf, 30 anos, designer gráfico e repórter freelancer, morador de Sanaa:
“Eu posso ver a dor em todos os lugares em Sanaa. Prédio alvejados, caças rasgando o céu todos os dias. As pessoas estão exaustas da guerra e pedem ao mundo que suspenda o bloqueio. É difícil na minha área encontrar óleo, somente no mercado clandestino, e os preços são muito altos. Isso porque eles impediram a entrada de derivados de petróleo, por meio do mar. Muitos hospitais foram fechados por causa disso. Como as pessoas podem encontrar comida agora, com preços altos do petróleo e do gás? E elas nem mesmo têm um salário! Queremos suspender o bloqueio e abrir os portos e aeroportos agora.”

Noah Jahaf, 36 anos, diretora-executiva da Organização Entesaf pelos Direitos das Mulheres e Crianças do Iêmen, moradora de Sanaa:
“Há uma guerra contra este país. Meu trabalho é monitorar e documentar crimes que ocorrem no Iêmen, causados pela coalizão comandanda pela Arábia Saudita. Eu vi inocentes serem assassinados pelos caças. Eles também são mortos pela fome e por doenças. A razão é o bloqueio imposto sem justificativa. O mundo deve verdadeiramente acreditar no que a humanidade significa. E esses crimes são vistos pelo olhar humano, não pelo viés político.”

 

ONU quer corredor humanitário na Etiópia

Ante a escalada do conflito na região do Tigré (norte da Etiópia) — onde forças dissidentes enfrentam o Exército federal —, o secretário-geral da ONU também pediu, ontem, “a abertura de corredores humanitários” para ajudar a população presa pelos combates. “Estamos muito preocupados com a situação na Etiópia e com o impacto humanitário dramático que provoca, inclusive ao Sudão”, afirmou António Guterres. O português lamentou que as autoridades etíopes se recusam a engajar-se em qualquer tipo de mediação para deter a violência. “Temos feito todo o possível para mobilizar o apoio humanitário aos refugiados, que encontram-se no Sudão. Exigimos o pleno respeito ao direito internacional, a abertura de corredores humanitários e as tréguas que poderiam ser necessárias para levar a ajuda humanitária às áreas de conflito”, declarou o chefe das Nações Unidas.

Sob condição de anonimato, um funcionário da ONU disse à agência de notícias France-Presse que a região do Tigré, onde ocorrem os combates “é um buraco negro”. “A verdade é que seria necessário que a ajuda humanitária se canalizasse até as zonas de conflito. Esta é uma grande preocupação nossa. Espero que escutem esses apelos”, acrescentou Guterres. “Desejo que isso termine rapidamente e que a Etiópia possa encontrar a paz que tanto necessita para seu desenvolvimento e para o bem-estar de sua população.” O secretário-geral da ONU lembrou que, “até o momento, não existe um acordo das autoridades etíopes para a mediação externa do conflito”. “Provavalmente, esta é a razão pela qual este tema ainda não foi levado ao Conselho de Segurança e por não ter surgido nenhuma iniciativa nesse sentido. Estamos totalmente à disposição da União Africana para apoiar qualquer iniciativa”, concluiu Guterres.

Foguetes

Os dissidentes do Tigré voltaram a lançar foguetes contra a região vizinha de Amhara, enquanto o governo central afirma que suas tropas se aproximam de Mekele, capital do Tigré. A agência Amhara Mass Media atribuiu o tiroteio ao “conselho ilegal da TPLF”, a Frente Popular de Libertação do Tigré, que comanda esta região norte e que há vários meses desafia a autoridade do governo federal. Antigas disputas territoriais impuseram-se aos habitantes de Amhara e Tigré, e as tensões entre as duas comunidades às vezes degeneraram em violência. Agora, os combatentes Amhara juntaram-se ao exército federal no conflito do Tigré.

Abiy Ahmed, primeiro-ministro desde 2018 e ganhador do Prêmio Nobel da Paz, lançou uma operação militar em Tigré, em 4 de novembro, contra a TPLF. Ele acusa a organização de tentar desestabilizar o governo federal e de atacar duas bases militares etíopes na região, o que os dissidentes negam.