Depois de mais de 20 horas de debates ininterruptos, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou, por 131 votos a favor, 117 contra e 6 abstenções o projeto de lei para a legalização do aborto. O texto foi enviado ao Congresso em 17 de novembro passado pelo presidente Alberto Fernández. A partir de segunda-feira, as comissões do Senado começam a debater o tema — o projeto de lei deverá ser levado ao plenário da Casa no dia 29. Em 9 de agosto de 2018, durante o governo do liberal Mauricio Macri (2015-2019), o Senado rejeitou um texto similar, por 38 votos contra 31. O atual projeto autoriza a interrupção da gravidez até a 14ª semana, desde que realizada em um prazo máximo de 10 dias corridos, a contar da data da solicitação. A gestante será obrigada a assinar um termo de consentimento.
“O debate é sobre aborto seguro ou aborto inseguro”, advertiu a deputada Ana Carolina Gaillard, da coalizão governista Frente de Todos, durante a sessão na Câmara. Ela lembrou que, desde 1983, quase 3 mil mulheres morreram em decorrência de abortos clandestinos. Mais de 38 mil são hospitalizadas por abortos em clínicas clandestinas todos os anos.
Em entrevista ao Clarín, a senadora Guadalupe Tagliaferri, favorável à legalização, assegurou que há “melhores perspectivas” do que em 2018. No entanto, o mesmo jornal sustenta que uma contagem feita pelos governistas aponta 34 senadores “verdes” (pró-aborto), 34 “celestes” (contrários à interrupção da gestação) e três indecisos. Pelas estimativas dos opositores, o projeto será derrubado por 36 votos contra 34. Uma terceira projeção divulgada ontem, no país, indicava empate — 33 votos para cada lado, com cinco senadores indecisos e um licenciado. Para o senador José Mayans, o projeto de lei “rompe o Estado de direito, pois viola a Constituição, os tratados internacionais e o Código Civil”. “Estou a favor das duas vidas”, desabafou.
Segundo o jornal La Nación, a senadora e ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner designou uma colega de sua confiança — Anabel Fernández Sagasti — para trabalhar pela obtenção dos votos necessários para a aprovação. O governo conta com 41 das 72 cadeiras no Senado. A deputada Graciela Camaño também frisou que o texto “é inconstitucional desde sua origem”, pois a Carta Magna defende a vida desde a concepção. “O aborto poderá ser lei, mas ele jamais poderá ser justo”, disse a congressista ao La Nación.
Emoção
Marta Alanis, integrante da organização não governamental Católicas por el Derecho a Decidir, assistiu à histórica sessão da Câmara, que começou pouco depois das 11h de quinta-feira e terminou às 7h30 de ontem. “Quando faltavam alguns minutos para a votação, nós colocamo-nos de pé, com os lenços verdes nas mãos, à espera do resultado. Assim que ele foi anunciado, eclodiram emoções reprimidas. Agitamos os lenços, choramos e cantamos”, relatou ao Correio. “Agora, resta-nos o debate no Senado. Estamos estudando, uma a uma, a inclinação de votos dos senadores. A Argentina tem a chance histórica de legalizar e descriminalizar o aborto, além de saudar a dívida da democracia para com as mulheres. Agora, será lei.”
Sabrina Cartabia Groba, 37 anos, advogada feminista e ativista da Red de Mujeres, considerou a votação como “um grande avanço”. “Em comparação com o debate parlamentar de 2018, cresceu a margem de votos a favor do aborto. O processo se fortaleceu bastante”, afirmou à reportagem. “Nós esperamos resultados muito bons no Senado. A sensação é a de que o aborto será legalizado antes do fim deste ano.”
Cartabia destaca que, quando o Executivo peronista envia um projeto de lei ao Congresso, a Casa Rosada sabe que tem os votos que precisa. “Não apresentariam um texto para perder. O peronismo é uma máquina de poder.”
Jornalista, ativista feminista e impulsionadora do Movimento Ni Una Menos (contra a violência de gênero), Mariana Carbajal disse ao Correio esperar que o Senado avalize o projeto de lei que obteve aprovação da Câmara dos Deputados. “Desta vez, creio que isso ocorrerá por uma diferença mais confortável do que em 2018. O Senado, presidido por Cristina Kirchner, aprovou todos os projetos enviados pelo Executivo por meio da Câmara.”
De acordo com Carbajal, a lei para a legalização do aborto tem votos favoráveis e contrários em todos os blocos. “Como na Câmara, o oficialismo certamente fornecerá a maior proporção de votos. A grande diferença em relação a 2018 é que se trata de um projeto do governo. Como o presidente enviou o projeto que regulamenta a interrupção voluntária da gravidez, ele quer que ela se torne lei e política pública”, acrescentou.
Eu acho...
“A verdade é que vivemos uma festa durante a votação no Congresso. Havia muitas mulheres de diferentes idades, inclusive adolescentes e meninas. Todas dançando e celebrando. Isso é muito importante, pois as mulheres celebram a recuperação da soberania e da liberdade. Trata-se de uma vitória não apenas das mulheres que precisam abortar, mas também por conta do efeito simbólico que isso tem sobre todas as argentinas, por recuperarem o poder de escolherem e a soberania sobre os próprios corpos.”
Sabrina Cartabia Groba, 37 anos, advogada feminista e ativista da Red de Mujeres
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