Governadores na geopolítica da vacina
Como se desenhou desde os primeiros sinais da pandemia no Brasil, os governos de estado voltam agora a assumir a linha de frente no próximo passo do combate à covid: a corrida pelas vacinas. Parceiros externos e organismos internacionais já se acostumaram a encontrar nos governadores o principal canal de interlocução prática com o país, ao menos desde que o presidente Jair Bolsonaro lançou ao mar o seu primeiro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Foi nesse quadro que instituições como o Butantan, de São Paulo, movimentaram-se em busca de cooperação com centros de pesquisa e laboratórios de diferentes partes do mundo, de maneira a assegurar uma fatia nos primeiros lotes disponíveis de vacina. O instituto paulista já recebeu da China insumos para a fabricação da CoronaVac, assim que o produto tiver a certificação da Anvisa — agência da esfera federal. Paraná e Bahia, que optaram pela parceria com a Rússia, percorrem o mesmo caminho para apressar a imunização com a Sputnik V. Ontem foi a vez do Rio Grande do Norte, que optou pela “vacina chinesa”.
É também em bases regionalizadas que caminha todo o restante da operação, desde a aquisição de seringas até a logística para transporte e armazenamento das vacinas. Visto de fora, o Brasil se movimenta de maneira semelhante ao que se vê acontecer nos Estados Unidos, em diferentes assuntos. No combate à covid, em especial, ambos os países-continentes lembram uma centopeia cujos membros caminham com direção e velocidade próprias.
O último a chegar...
No terreno da concorrência direta entre as multinacionais do setor farmacêutico, a movimentação dos últimos dias indica que a ordem é ramificar os acordos para entrar o quanto antes na maior fatia possível de um mercado potencial de mais de 7 bilhões de almas. Pioneiras na aplicação em larga escala para o público, a Sputnik V e a vacina do consórcio Pfizer-BioNTech tomaram caminhos inversos. Os russos começam em casa. A dupla EUA-Alemanha faz sua estreia no Reino Unido.
A universidade britânica de Oxford, que desenvolve seu produto com o laboratório anglo-sueco AstraZeneca, tratou de responder à “invasão” de seu território pela americana Pfizer. E a opção foi por testes conjuntos com a russa Gamaleya, “berço” da Sputnik. A ideia parece ser a oferta de uma vacina com eficácia mais ampla e assegurada, uma vez que entrará na disputa um pouco mais tarde. A vacina de Oxford, como ficou conhecida, é a aposta do governo Bolsonaro, via Fiocruz/Manguinhos.
Paciência oriental
A chinesa Sinovac, parceira do Butantan no desenvolvimento da CoronaVac, parece encarnar a percepção peculiar do tempo que caracteriza o país de origem. Foco inicial da pandemia, a China destoa dos números de casos da doença e de mortes registrados nos EUA, na Índia e no Brasil, que estão entre as nações mais populosas. E não compartilha a pressa para emplacar sua vacina.
Com os olhos voltados para o tabuleiro geopolítico em movimento, projetando suas ações para o futuro, os estrategistas de Pequim colocam o empenho principal em estabelecer cabeças de ponte com longo alcance. No Brasil, mais do que vender os primeiros lotes de vacina, os chineses se empenham em consolidar uma associação com futuro mais aberto do que a vacinação contra o vírus do momento. Com a mesma dose de paciência proverbial, fincam os pés também no México.
E, com isso, já causam dores de cabeça nas áreas pensantes do establishment político americano, momentaneamente paralisado entre a indiferença de Donald Trump para a doença e a espera pela entrada em cena do sucessor eleito, Joe Biden.
Prêt-à-porter
A Rússia de Vladimir Putin, do seu lado, tem como estratégia um estilo que foi apelidado certa vez por um importante diplomata brasileiro ao prêt-à-porter. Vender roupa “pronta para vestir”, em larga escala, foi a fórmula de sucesso para a indústria francesa da moda. Tornou marcas de respeito acessíveis a uma faixa muito mais ampla de consumidores do que a dos habitués dos ateliês de alta costura.
Ainda no governo Lula, quando o Brasil relançou a concorrência para o reequipamento da FAB (Força Aérea Brasileira), o caça russo Sukhoi despontava entre os preferidos, do ponto de vista técnico. No entanto, ficou na primeira etapa da disputa, superado pelos concorrentes Rafale (França), F-18 (EUA) e Grippen (Suécia). Saiu vencedor o último, já no governo Dilma, e as primeiras unidades foram entregues recentemente à FAB, com Bolsonaro no Planalto.
Falando sobre a exclusão do Sukhoi, na fase inicial, uma figura de destaque no Itamaraty sugeriu que o mau resultado poderia servir como “lição” para a Rússia no que diz respeito às relações com o Brasil no campo da defesa e da tecnologia. “Eles estão acostumados a desembarcar as caixas no país importador, mandar os próprios técnicos para montar o equipamento, treinar quem vai usá-lo e só”, explicou. “Se você tiver algum problema, eles mandam o pessoal deles pra verificar e, se necessário, levam de volta para reparar o defeito.”
Na época, a Venezuela vinha de adquirir não apenas os caças, mas um lote respeitável de fuzis AK (o famoso Kalashnikov), com a opção de instalar uma filial da fábrica no país vizinho. “Com a gente”, observou o diplomata, “vão ter que aprender a fazer diferente”.
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