Imperdonable

'É mais fácil matar uma pessoa do que amar um homem': o chocante documentário sobre criminosos gays

Tudo isso ocorre no ambiente superlotado da prisão de San Francisco Gotera, onde um grupo de membros e ex-membros de gangues reconhece publicamente sua homossexualidade

BBC
Alejandro Millán Valência - BBC News Mundo
postado em 15/12/2020 08:25

Em uma cena do documentário salvadorenho Imperdonable (Imperdoável, em tradução livre), Giovanni, o personagem principal, relata de forma contundente um assassinato violento. E depois ele diz uma frase que marca o filme: "É mais fácil matar uma pessoa do que amar um homem".

Tudo isso ocorre no ambiente superlotado da prisão de San Francisco Gotera, onde um grupo de membros e ex-membros de gangues reconhece publicamente sua homossexualidade.

Após 12 dias de filmagem, o produto final já deu os primeiros frutos: há algumas semanas, foi selecionado pelo IDA Documentary Awards, um dos mais prestigiosos prêmios dedicados apenas a documentários.

E por ter vencido alguns prêmios, como melhor curta-metragem no IDFA e HotDoc, pode estar entre os selecionados para uma indicação ao Oscar.

"Gostaria que acontecesse. Seria a primeira vez que um filme de El Salvador chegaria ao Oscar", disse a diretora, a espanhola Marlén Viñayo.

A seguir, leia a entrevista da BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) com Viñayo:

BBC News Mundo - Como você chegou à história de homens, membros de gangues, dentro de uma prisão, que decidem dizer abertamente que são homossexuais?

Viñayo - Moro aqui em El Salvador há quase oito anos e a verdade é que nesse período nunca me interessei em fazer um documentário sobre gangues, porque é um dos assuntos mais conhecidos e falados de El Salvador para o mundo e acreditei que não tinha nada de novo para contribuir.

Membro de gangue
Getty Images
Muitos dos membros da gangue que estavam na prisão de San Francisco Gotera deixaram essas organizações e se converteram ao cristianismo

Mas um dia, Carlos Martínez, que é um repórter do jornal El Faro especializado em gangues, me disse que tinha acabado de sair de uma prisão em San Francisco Gotera e que lá conheceu alguns membros de gangues que disseram abertamente que eram homossexuais.

Fiquei muito surpresa porque as gangues são organizações criminosas profundamente machistas e homofóbicas. E sob uma única suspeita de que um de seus membros seja gay, eles são mortos. Então, descobrindo esse grupo de pessoas, fiquei muito surpresa.

Com essa história, percebi que tinha algo novo para contar e que poderia oferecer uma perspectiva única, diferente de tudo que você já ouviu falar sobre gangues.

BBC News Mundo - Tem a história, claro, muito interessante, mas o que você quer contar nesse documentário?

Viñayo - Tento contar uma história de que o mundo é complexo. Que não é uma questão de perfeito bom ou perfeito mau. Que o mundo não é branco puro ou preto puro, mas existem muitos tons de cinza.

Acho que este documentário é sobre esses cinzas. É uma história que fala de amor, que fala de ódio. Que fala do abismo que um ser humano pode alcançar e que retrata uma sociedade com uma bússola moral quebrada: para algumas pessoas é mais fácil matar um homem do que amar outro.

Idealmente, o documentário deve gerar um debate sobre o assunto.

BBC News Mundo - Como se filma uma produção em uma prisão onde até os guardas têm que usar capuz para não serem reconhecidos?

Viñayo - Bem, para mim foi um desafio principalmente porque eu sabia que só tínhamos 12 dias para filmar. Eles só nos deram esse tempo para irmos para a prisão.

E não sabíamos o que iríamos encontrar. Eu estava interessada em saber primeiro por que essas pessoas — das quais eu não sabia nada até o momento — haviam decidido entrar para uma organização criminosa como uma gangue, que também os odeia pelo que são.

Outra das dúvidas que eu tinha era se finalmente nesta pequena cela de isolamento — para onde são levados presidiários que se declaram homossexuais — eles se sentiram livres de alguma forma.

Mas quando chegamos lá, não sabíamos realmente o que a realidade iria nos dar. Então o desafio era que nesses 12 dias de filmagem tínhamos que estar com os olhos superabertos, com os ouvidos superatentos ao que a realidade tinha para nos dizer.

Foi uma filmagem muito intensa, num espaço de filmagem muito pequeno, mas tivemos a sorte de não só nos darem autorização para filmar dentro da prisão, mas também de nos deixarem entrar para filmar dentro da cela, o que para mim foi fundamental.

Giovanni e outro preso
Neil Brandvold.
A história de Giovanni se passa no presídio San Francisco Gotera, em El Salvador

Depois de encontrarmos os personagens, a certa altura encontramos o sentido do filme, que é quando um deles disse que para ele matar uma pessoa era ruim, mas não era tão difícil, enquanto amar outro homem era algo fora "do natural".

E o que estamos tentando fazer com o documentário é dar sentido a essa frase.

BBC News Mundo - São membros de gangues, acusados ??de crimes graves. Não há o risco de fazer apologia a um grupo que causou tanto sofrimento em El Salvador?

Viñayo - Acredito que as gangues fizeram muito mal ao país, fizeram inúmeras atrocidades, mas também acredito que isso está no documentário.

Tem aquela parte da gangue que mata gente, que estupra gente, que não é omitida no documentário. Na verdade, era muito importante para nós que estivesse.

Mas também queríamos mostrar outro ponto de vista. Porque as gangues causaram danos profundos não só em El Salvador, mas em outras partes do continente, e para tentar impedir que isso aconteça, temos que conhecê-las muito bem, temos que entendê-las.

Repito, isso não é sobre perfeito bom ou perfeito ruim. Quando um menino de 12 anos se torna um assassino e depois faz coisas horríveis, para mim ele também é vítima de uma sociedade que o tornou um assassino quando ele tinha apenas 12 anos.

Então eu acho que a questão é mais complexa, a sociedade salvadorenha é muito complexa.

BBC News Mundo - Que nos deixa um personagem como Giovanni, que em poucas palavras revela quase toda sua vida em meia hora.

Viñayo - Sim, quando chegamos ao presídio perguntamos quem queria participar, alguns responderam que sim e entre eles estava o Giovanni, que além de ter uma história interessante, foi importante para contar muito sobre o que é esta sociedade salvadorenha.

Guardas da prisão usando balaclava para esconder os rostos
Getty Images
Guardas da prisão usam balaclava para esconder os rostos

Além disso, ele tinha um relacionamento com alguém que estava na mesma cela e havia certos conflitos entre eles que pensávamos que poderiam dar ao documentário outro ponto de vista. Então decidimos que ele seria o personagem central.

Com o Giovanni confirmei o que te dizia: que o ser humano é muito complexo. Que é muito fácil julgar pelo preconceito que cada um de nós tem, mas que, se você conhece muito mais sobre as histórias um do outro, perceberá que tudo é muito mais complicado.

E isso nos levou a ter discussões muito intensas durante a produção e edição, porque não queríamos romantizar a imagem do grupo. De não dizer que por ser homossexual ele estava sendo uma vítima, mas mostrando que ele também era um assassino e tinha feito coisas terríveis.

Para mim também foi um conflito quase me perguntar: "Como me sinto por essas pessoas?". Porque a certa altura elas contam coisas horríveis, com frieza absoluta, e depois há momentos de ternura e amor entre elas. E foi então que decidi que não tinha que dizer o que sinto por eles, mas sim tentar transmitir esta realidade que nos encontramos nesta pequena cela e que o público tire as suas próprias conclusões.

BBC News Mundo - Há um elemento religioso muito poderoso nessa história. Quando ele é encontrado na produção?

Viñayo - O tema religioso entra nesta busca para tentar dar sentido àquela frase que nos disse Giovanni, de que para ele era mais fácil matar do que amar uma pessoa do mesmo sexo.

Bem, aí encontramos diferentes aspectos da sociedade salvadorenha que tínhamos que retratar. E uma delas foi a Igreja, ou melhor, a posição da Igreja sobre esse assunto, que foi muito importante para o personagem principal porque no presídio onde ele está há duas Igrejas lutando pelo controle do lugar.

Somado a isso está a postura da gangue em relação aos gays. E a posição do Estado sobre essa questão, que podemos ver com o teste científico (uma espécie de teste de personalidade) que fazem ao protagonista.

E também existem contradições individuais sobre o que significa para eles ser gay nesta sociedade e naquele micromundo em que vivem.

Mas sobre a prisão há algo interessante a dizer: há dois anos, a maioria dos presos que estavam lá deixaram a gangue e se converteram à Igreja cristã. E no documentário podemos ver que isso faz parte do cotidiano dos internos.

Prisioneiros em El Salvador
Getty Images
As gangues em El Salvador são responsáveis ??por numerosos e violentos crimes

Com um ingrediente especial: aqueles que renunciaram às gangues eram inimigos de morte e assim que deixaram de pertencer a esses grupos tornaram-se irmãos de religião. E então tem esse pequeno grupo de ex-membros de gangue, agora convertidos ao cristianismo, que se dizem abertamente gays. Muito complexo, como eu disse.

E também é claro que as prisões de El Salvador não são locais destinados à reintegração, mas sim à punição.

BBC News Mundo - O esforço de produção é perceptível. Existe algum tipo de apoio ou ajuda ao cinema em El Salvador?

Viñayo - Não. É um país que não tem indústria cinematográfica, que não tem lei cinematográfica, não tem fundo cinematográfico. A televisão não investe na realização de projetos de filmes. Não há formação.

É realmente uma corrida de longa distância, onde aqueles que como nós querem fazer filmes ficamos acabados, porque nos importamos que as histórias sejam contadas, mas é muito difícil fazer isso.


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