Em 7 de janeiro de 2015, o então presidente da França, François Hollande, dirigiu-se até a sede do jornal satírico Charlie Hebdo, e fez uma promessa: “Hoje, toda a República foi atacada. A liberdade será sempre mais forte do que a barbárie”. No interior do prédio, estavam os corpos de 11 pessoas — o editor-chefe Stéphane Charbonnier (“Charb”) e o guarda-costas, quatro chargistas, dois jornalistas, um revisor e um agente de manutenção. Mais seis franceses morreram nas 48 horas seguintes ao atentado, quatro deles depois que o terrorista Amédy Coulibaly invadiu um supermercado kosher (comércio de alimentos para judeus) e fez reféns. Passaram-se 2.170 dias desde o massacre motivado pela publicação de caricaturas do profeta Maomé (leia Memória). Ontem, a Justiça francesa começou a cumprir a promessa de Hollande e, depois de três meses de julgamento, condenou 14 cúmplices dos irmãos Saïd e Chérif Kouachi, autores do ataque ao Charlie Hebdo, e de Coulibaly. Os três extremistas foram abatidos pela polícia. As sentenças proferidas pela Corte de Paris variam de quatro anos de reclusão à prisão perpétua.
As penas são inferiores àquelas solicitadas pela Promotoria Antiterrorismo, que pedia pena perpétua a dois acusados e de 5 a 40 anos de cárceres para os outros 12, por considerar que foram “agentes-chaves” para a realização dos atentados. Mohamed Belhoucine, supostamente morto na Síria e julgado à revelia, recebeu a pena máxima por ter sido o suposto mentor intelectual de Coulibaly. Hayat Boumeddiene, noiva de Coulibaly, e Ali Riza Polat, braço-direito de Belhoucine, foram condenados a 30 anos de prisão, cada. A advogada de Polat, o único dos três principais acusados presente no tribunal, anunciou imediatamente que recorrerá da sentença.
Richard Malka, advogado do Charlie Hebdo, celebrou o resultado do julgamento, em entrevista publicada no site do jornal satírico. “Como advogado de partes civis, não fomos movidos por um espírito de vingança, mas pelo desejo de compreender. Queríamos que a justiça fosse feita. Ela falou”, afirmou. “A mensagem da Justiça é a de que qualquer pessoa que participar, de uma forma ou de outra, do terrrorismo enfrentará penas de prisão muito severas”.
Para Malka, uma porta se fecha, enquanto outra se abre. “Uma nova etapa deve nos unir. (…) É a vontade da populçação de agir contra esse novo fascismo, que é o terrorismo islâmico. (…) A religião deve permanecer na esfera privada e jamais interferir na vida pública”, acrescentou. O advogado reconhece que a apelação não será um momento fácil para as vítimas e para os familiares. “No entanto, somente podemos saudar que existam recursos. É uma garantia da boa Justiça e de um país democrático”, observou.
Intolerância
Christophe Deloire — secretário-geral dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e diretor do Fórum sobre Informação e Democracia — também elogiou o verecicto. “É uma prova de que extremistas violentos não têm a última palavra. Graças à Justiça, é a liberdade que tem a última palavra”, escreveu em seu perfil no Twitter. “Quase seis anos depois da tragédia na Charlie Hebdo, a justiça foi feita. Existem tantos países no mundo onde crimes como este não estão sujeitos à condenação. Este julgamento de três meses foi uma honra para o sistema judicial francês”, avaliou. De acordo com Deloire, a intolerência religiosa mantém-se como uma das piores ameaças à liberdade de expressão.
Na capa de sua edição mais recente, o Charlie Hebdo não abandonou o típico estilo provocador e publicou uma caricatura de Deus sendo levado por uma viatura da polícia. O desenho acompanha o título “Deus colocado em seu lugar”. “Hoje, o ciclo de violência que começou há quase seis anos na redação do Charlie Hebdo vai finalmente fechar”, estimou Laurent Sourisseau, o “Riss”, diretor da publicação e um dos sobreviventes do atentado de 2015. “Pelo menos na esfera criminal, porque, na humana, as repercussões jamais serão apagadas.”
Durante o julgamento, os sobreviventes relataram os momentos de terror. A colunista Sigolebe Vinson descreveu o “silêncio moral” na redação, enquanto seus colegas jaziam mortos à sua volta. Zarie Sibony, caixa do supermercado kosher Hyper Cacher, descreveu como caminhou sobre os corpos nos corredores do estabelecimento, durante o confronto de quatro horas de Coulibaly com a polícia. Segundo os serviços de inteligência da França, 8 mil extremistas islâmicos estão no radar das autoridades do setor de segurança.
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Memória
Três dias de horror em Paris
Às 11h30 (8h30 em Brasília) de 7 de janeiro de 2015, dois terroristas armados com fuzis Kalashnikov AK-47 e com um lança-foguetes invadiram o prédio do Charlie Hebdo. O jornal satírico tinha recebido várias ameaças por publicar charges sobre Maomé — qualquer representação gráfica do profeta do islã é algo considerado inadmissível pelos muçulmanos. Os irmãos franco-argelinos Saïd e Chérif Kouachi, de 30 e de 33 anos, apontaram as armas para a cabeça da chargista Corine Rey, a “Coco”, no momento em que a equipe do Charlie fazia uma reunião de pauta.
Aos gritos de Allahu Akbar (“Alá é maior”, em árabe) e de “Vingamos o profeta!”, eles começaram a disparar aleatoriamente. Os chargistas Georges Wollinski e Cabu foram os primeiros a tombarem mortos. Os dois irmãos terroristas executaram 11 pessoas dentro do prédio. Além de Wollinski e de Cabu, morreram Stéphane Charbonnier (“Charb”), editor-chefe do Charlie; e o chargista Bernard Verlhac, o “Tignous”. Outros quatro integrantes da redação do Charlie ficaram feridos.
Depois de saírem do edifício, Saïd e Chérif fugiram a bordo de um Citroën D3 escuro (foto). Na fuga, trocaram tiros com a polícia e mataram, à queima-roupa, um policial. Dois dias depois, os extremistas foram abatidos pelas forças de segurança. Em 8 de janeiro, o maliano-francês Amedy Coulibaly assassinou uma policial em Montrouge, no subúrbio de Paris. No dia seguinte, ele fez reféns no Hyper Casher, um supermercado kosher (de produtos consumidos por judeus). Encurralado pelos agentes, matou um funcionário e três clientes, antes de ser eliminado.
O peso da lei
Quem são os três cúmplices com penas mais severas pelos atentados contra o jornal Charlie Hebdo
Mohamed Belhoucine — prisão perpétua
• O jihadista francês foi dado como morto na Síria. Por isso, foi julgado à revelia. É o suposto mentor de Amedy Coulibaly, o terrorista que invadiu o supermercado kosher (judaico) Hyper Cacher, em 9 de janeiro de 2015. A Justiça o considerou culpado de “cumplicidade” em crimes terroristas. Na ocasião, Coulibaly e quatro reféns foram mortos.
Hayat Boumeddiene — 30 anos de prisão
• Noiva de Amedy Coulibaly, também foi julgada à revelia. Dias antes do ataque à redação o Charlie Hebdo, ela embarcou rumo à Síria. Por isso, é considerada foragida pelas autoridades francesas. Para ter direito ao regime semiaberto, precisará cumprir dois terços da pena em reclusão.
Ali Riza Polat — 30 anos de prisão
• O franco-turco de 35 anos é considerado o braço-direito de Belloucine. De acordo com a Corte, ele teve “papel crucial” na preparação dos atentados. A defesa de Polat prometeu apelar da decisão da Justiça.