Conexão diplomática

por Silvio Queiroz silvioqueiroz.df@gmail.com

Correio Braziliense
postado em 18/12/2020 21:44
 (crédito: Alberto Pizzoli/AFP)
(crédito: Alberto Pizzoli/AFP)


Um fantasma ronda (e não é o de Marx)

O espectro da pandemia da covid-19 apresenta-se, desde logo, entre os múltiplos fatores alinhados para condicionar o cenário internacional em 2021. O novo ano que apita na curva, anunciando a chegada dentro de duas semanas, começa com a corrida pela vacina no topo da agenda de cada governo e cada população. Do sucesso na imunização e da eficácia das fórmulas desenvolvidas em tempo recorde dependerá, em grande medida, a capacidade que cada país terá para recolocar a própria economia nos trilhos.

Para o Brasil, que deve fechar 2020 com retração da ordem de 5% no Produto Interno Bruto (PIB), o desafio de adquirir mais de 400 milhões de doses — e o estoque requerido de seringas e outros equipamentos — será apenas o primeiro. Vai requerer do governo federal planejamento e ação que tardaram a se esboçar. Vai, igualmente, colocar em teste a política externa traçada na primeira metade do mandato pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo chanceler Ernesto Araújo.

O coronavírus é apenas o mais visível, talvez também o mais imediato, entre os fantasmas que rondam não apenas a Europa, como na metade do século 19 — quando Karl Marx usou essa figura de linguagem nas primeiras linhas do Manifesto do Partido Comunista. A recomposição de forças em curso no tabuleiro geopolítico global desafia os governantes a identificar, em meio aos movimentos, perigos e oportunidades que se apresentarão.

Decifra ou...

A um mês da troca de guarda na Casa Branca, deslindar as linhas de política externa que os EUA seguirão com Joe Biden é exercício crucial para o Planalto e o Itamaraty. Já na campanha vitoriosa de 2018, o hoje presidente apontou a relação preferencial com Washington como pedra fundamental na reorientação da diplomacia brasileira. Bolsonaro cultivou e ostentou, dentro e fora do país, uma coleção de afinidades com Donald Trump, que passa o bastão em 20 de janeiro.

O menosprezo pela pandemia, em particular, aproximou-os até fisicamente, na altura em que a OMS — questionada e rejeitada por ambos — declarava guerra mundial ao coronavírus. Os números exibidos por Brasil e EUA, nas estatísticas da covid, desenham curvas notavelmente semelhantes.

Com Biden, muda não apenas a estratégia para combater a emergência sanitária. Em especial, está na política do novo governo americano para o comércio mundial o enigma colocado diante de Bolsonaro e Araújo — como no mito grego, em que Édipo foi desafiado pela esfinge com o ultimato “decifra-me ou te devoro”.

To Brics or not to Brics

De saída, o oponente e sucessor de Trump acena com uma abordagem menos belicosa na relação de rivalidade e complementaridade com a China. No terreno concreto, a escolha dos nomes-chaves para a equipe sinaliza uma inflexão, de alcance a ser medido, do protecionismo unilateralista para uma atitude mais construtiva nos mecanismos multilaterais.

É sintomático, porém, que o Pentágono tenha reafirmado, em novo documento, as linhas estratégicas esboçadas desde o período final de governo de Barack Obama (2009-2017). O núcleo pensante da Defesa segue identificando na China uma “ameaça estratégica” e aponta a Rússia de Vladimir Putin como “perigo militar”, no alcance mais imediato.

Não apenas os regimes de Pequim e Moscou compõem duas das cinco letras que formam a sigla Brics, em que o Brasil está representado na inicial. Putin e o colega Xi Jinping, que dão passos na direção de uma cooperação mais estreita em diversos quadrantes, perfilam-se na primeira linha do “quinteto emergente”, completado por Índia e África do Sul.

Nos anos Lula-Dilma, em especial com Celso Amorim à frente do Itamaraty, o Brics foi a aposta do Brasil para a inserção na primeira fila da política mundial. Ser ou não ser do bloco é, agora, o dilema hamletiano da política externa.

Mares nunca dantes

No âmbito da vizinhança imediata, a reunião cúpula do Mercosul, realizada na semana que se encerra — por teleconferência — deu o tom para a agenda que se apresenta para 2021. Entre críticas e queixas quanto às deficiências da integração comercial, os presidentes de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, com a Bolívia como observadora em vias de adesão, terão como eixo central a ratificação do acordo firmado em 2019 com a União Europeia

A mais vasta e populosa área de livre-comércio que o tratado estabelece representa, para ambas as margens do Atlântico, aventurar-se por mares nunca dantes navegados. A começar pela ratificação do texto nos parlamentos de cada país envolvido. O Brasil está sob observação atenta e minuciosa dos governos europeus, que alegam preocupações com a política ambiental. À medida em que se tornar empecilho para o avanço do processo, pode-se ver, também, sob pressão dos parceiros sul-americanos. Do ponto de vista da UE, às voltas com a conclusão do Brexit, o acordo com o Mercosul poderá se tornar um estorvo ou uma válvula de escape.

Acabou...

Chega ao fim o ano mais insólito de que a maioria de nós tem notícia ou lembrança. À espera do que a troca de folhinha nos reserva, a coluna faz um breve intervalo para as festas e retorna na edição de 9 de janeiro. Para leitores e interlocutores, que 2021 chegue com as promessas de um ano realmente novo.

 

 

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