Aborto

Argentina faz história

País autoriza a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana e torna-se a maior nação da América Latina a legalizar a prática. Inevitável para alguns e inconstitucional para outros, o projeto de lei apoiado pelo presidente obteve votos além do esperado

Correio Braziliense
postado em 31/12/2020 01:19
 (crédito: Ronaldo Schemidt/AFP)
(crédito: Ronaldo Schemidt/AFP)

Em uma votação tensa e histórica, o Senado da Argentina aprovou a legalização do aborto, independentemente da causa, até a 14ª semana de gestação. Com isso, o país junta-se a Uruguai, Guiana, Guiana Francesa e Cuba na lista de nações latinas que aprovam a interrupção gratuita e voluntária da gravidez. Comemorada por grupos feministas, a decisão foi lamentada por religiosos.

O projeto de legalização do aborto é do partido do presidente de centro-esquerda Alberto Fernández e já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados. Ontem, recebeu 38 votos favoráveis, 29 contrários e uma abstenção. “O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Hoje, somos uma sociedade melhor, que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública”, escreveu o chefe de Estado em sua conta no Twitter.

Embora a aprovação tenha sido mais folgada do que o esperado, a votação, que se estendeu pela madrugada, foi tensa. Por mais de 12 horas, os parlamentares expuseram acalorados argumentos a favor e contra a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação. O suspense aumentou quando alguns membros da governista Frente de Todos deram as costas ao projeto, enquanto alguns senadores católicos votaram a favor, independentemente de suas crenças religiosas. Até o último minuto, os senadores fizeram alegações contraditórias, que iam do caráter “histórico” e “inevitável” da lei até seu aspecto “inviável” e “inconstitucional”.

Maré verde

A votação foi acompanhada por milhares de militantes feministas, que celebraram e choraram de emoção com o resultado. Além das mulheres que estavam na praça diante do Parlamento, muitas saíram às janelas e às varandas para comemorar a notícia.

Um projeto para legalizar o aborto havia sido aprovado em 2018 pela Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado pelo Senado. A mudança foi possível graças à campanha protagonizada por milhares de jovens e grupos de mulheres, a chamada “maré verde”.

Com a aprovação, a Argentina, terra natal do papa Francisco, torna-se a maior nação da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez. Em sua última audiência antes do fim do ano, o pontífice afirmou, ontem, em uma referência explícita a seu país: “Os cristãos, como todos os crentes, bendizem a Deus pelo dom da vida. Viver é antes de tudo ter recebido a vida. Todos nascemos porque alguém desejou para nós a vida. E essa é apenas a primeira de uma longa série de dívidas que contraímos vivendo”, disse.

Fé X pecado

A legalização, que contempla a objeção de consciência (os objetores terão a obrigação de enviar a paciente para outro centro médico), não seguiu linhas partidárias. Embora a governista Frente de Todos apoiasse o projeto, nem todos os congressistas do grupo aprovaram a medida. Alguns parlamentares votaram a favor da legalização, apesar de sua fé religiosa.

“Por que queremos impor por lei o que não podemos impedir com nossa religião?”, questionou a senadora Gladys González, do grupo opositor Juntos Pela Mudança e católica praticante, ao anunciar apoio ao projeto.O presidente Fernández, próximo ao papa Francisco, havia declarado há alguns dias: “Sou um católico que pensa que o aborto não é um pecado”.

O governo calcula que sejam realizados entre 370 mil e 520 mil abortos clandestinos por ano no país de 45 milhões de habitantes. Desde a restauração da democracia, em 1983, mais de 3 mil mulheres morreram devido a interrupções feitas sem segurança. De modo paralelo, o Congresso também aprovou a Lei dos 1.000 dias para dar apoio material e de saúde às mulheres de setores vulneráveis que desejarem levar adiante a gravidez, de modo que as dificuldades econômicas não representem um motivo para abortar.

Os opositores à interrupção voluntária da gravidez, que adotaram a cor azul, tiveram como representantes a Igreja Católica e a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas (Aciera), que promoveram grandes manifestações nas ruas e missas ao ar livre. “A Igreja na Argentina quer ratificar que continuará trabalhando com firmeza e paixão no cuidado e serviço à vida. Essa lei que foi votada aprofundará ainda mais as divisões em nosso país. Lamentamos profundamente o afastamento de parte das lideranças do sentimento do povo, que se expressou de várias formas a favor da vida”, reagiu a Conferência Episcopal em nota.

“Hoje, a Argentina retrocedeu séculos de civilização e respeito ao direito supremo da vida”, afirmou a Aciera em um comunicado que tem como título Hoje é um dia triste. Também nos arredores do Congresso, muitas pessoas contrárias à aprovação da lei aguardaram de joelhos o resultado da votação, recebido com grande decepção.

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Bolsonaro lamenta

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, lamentou a legalização do aborto no país vizinho. Segundo ele, as “vidas das crianças argentinas” poderão, de agora em diante, ser “ceifadas” com “a anuência do Estado”. “Lamento profundamente pelas vidas das crianças argentinas, agora sujeitas a serem ceifadas no ventre de suas mães com anuência do Estado”, escreveu em sua conta no Twitter.

Leis variadas

As leis sobre o aborto variam muito no mundo, com restrições significativas em alguns territórios e regiões. A interrupção é proibida em qualquer caso, mesmo quando a vida da mãe está em jogo, em 17 países, como Malta, Congo, Honduras e Filipinas. No Brasil, a prática é permitida em caso de estupro, risco para a mãe ou malformação grave do feto. No Chile, quando há risco de morte da mãe, estupro e inviabilidade fetal.

As mulheres da Europa, da América do Norte e da Oceania são, em geral, as que mais gozam das leis mais permissivas, aprovadas muito recentemente em alguns casos. A Nova Zelândia, por exemplo, descriminalizou o aborto em março de 2020. Até essa data, era punível com até 14 anos de prisão, embora essa sentença, meramente teórica, nunca tenha sido aplicada.

Na França, os deputados aprovaram, no início de outubro, a prorrogação do prazo legal para o aborto de 12 para 14 semanas de gravidez. O texto será examinado pelo Senado a partir de 20 de janeiro. Nos Estados Unidos, a interrupção da gravidez é permitida desde uma decisão da Suprema Corte de 1973.

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