Silenciado pelas redes sociais (leia nesta página) e abandonado por assessores, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, corre o risco de ser forçado a deixar o poder antes mesmo de 20 de janeiro — data da posse do sucessor, o democrata Joe Biden. No dia seguinte à invasão e à depredação do Capitólio por vândalos incitados pelo magnata, a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, afirmou que a destituição de Trump “é uma urgência da mais alta importância”. Além de classificar o magnata republicano como “uma pessoa muito perigosa que não deveria continuar no cargo” e de acusá-lo de incitar uma “insurreição armada contra a América” e de “ato sedicioso”, Pelosi uniu-se ao líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer, e exortou o vice-presidente, Mike Pence, a removê-lo do cargo, por meio da invocação da 25ª Emenda da Constituição. “Se o gabinete do vice-presidente não agir, o Congresso deve estar preparado para seguir adiante com o impeachment”, alertou a deputada, depois de comandar, com Pence, a sessão parlamentar que certificou a vitória eleitoral de Biden. A remoção permanente de Trump pelo acionamento da 25ª Emenda necessitaria da aprovação de dois terços do Congresso — 67 senadores e 290 deputados.
Segundo a democrata, com a invasão ao Capitólio — que deixou quatro mortos e levou 68 pessoas à prisão —, “foi ultrapassado um limiar de tal magnitude que não há como este presidente continuar autorizado a tomar qualquer decisão”. “A profanação alegre do Capitólio dos EUA, o templo de nossa democracia, e a violência contra o Congresso são horrores que mancharão para sempre a história de nossa nação — instigadas pelo presidente”, acrescentou Pelosi. Horas antes, Schumer tinha declarado que “este presidente não deve ocupar o cargo nem por mais um dia”.
Apesar de não ter diretamente se unido ao coro em defesa da destituição, Biden culpou Trump por causar um dos “dias mais sombrios” da história dos Estados Unidos. “Ele desencadeou um ataque total às instituições de nossa democracia desde o início e ontem (quarta-feira) foi o culminar desse ataque implacável”, afirmou. O presidente eleito recusou-se a chamar de manifestantes os vândalos que tomaram o Congresso. “Não ousem chamá-los de manifestantes. Eles eram insurrecionistas. Terroristas domésticos. É tão básico, é tão simples assim”, observou.
Biden se disse convencido de que, se os invasores fossem manifestantes antirracismo, como os do movimento Black Lives Matter (“Vidas negras importam”), eles teriam sido tratados de “modo muito distinto”. “Isso é inaceitável”, opinou.
Nas fileiras do Partido Republicano, um dos principais aliados de Trump admitiu danos ao legado presidencial. “Será uma grande parte de sua presidência. Foi uma ferida autoinfligida. Ele foi longe demais”, declarou o senador Lindsey Graham. Ele disse não acreditar que a invocação da 25ª Emenda seja apropriada neste momento, mas frisou que, se algo ocorrer, “todas as opções estarão sobre a mesa”. “É com pesar que peço, pelo bem de nossa democracia, a invocação da 25ª Emenda. Trump abdicou-se de seu dever de proteger o povo americano e a casa do povo. Ele invocou e inflamou paixões que apenas deram combustível à insurreição vista ali. É hora de invocar a 25ª Emenda e pôr fim a este pesadelo”, afirmou Adam Kinzinger, deputado republicano.
Pela manhã, Trump reconheceu que seu mandato terminou e se disse comprometido com uma transição “ordeira”. “Embora esteja totalmente em desacordo com o resultado destas eleições — e os fatos me apoiam —, haverá uma transição em ordem em 20 de janeiro. Isso representa o fim de um dos melhores primeiros mandatos e é apenas o início da nossa luta para devolver aos EUA sua grandeza”, anunciou. O magnata foi surpreendido pelas renúncias da secretária de Transportes, Elaine Chao, e do ex-chefe de gabinete Mick Mulvaney. Mulher de Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado, Chao classificou o ataque ao Capitólio como “um evento traumático, totalmente evitável”. “Isso me perturbou de tal forma que não posso ignorar”, declarou. “Não posso ficar aqui depois de ontem”, desabafou Mulvaney à emissora CNBC.
Erwin Chemerinsky, especialista em direito constitucional pela Universidade de Berkeley, explicou ao Correio que a Seção 4ª da 25ª Emenda estabelece que o vice-presidente e a maioria do gabinete presidencial podem considerar o presidente incapaz. “Não prevejo que ela seja utilizada no atual contexto. Biden provavelmente não sente que tenha algo útil a oferecer neste debate e que isso poderia prejudicá-lo”, disse. “Não sei o que ocorrerá nos próximos 13 dias, mas Trump é uma ameaça à estabilidade e à democracia. Felizmente, faltam apenas 13 dias.”
Incapacidade para governar
Aprovada pelo Congresso em 16 de julho de 1965, pouco depois do assassinato do presidente John Fitzgerald Kennedy, e ratificada em 10 de fevereiro de 1967, a 25ª Emenda da Constituição trata da incapacidade do presidente e da sucessão. “Sempre que o vice-presidente e a maioria das principais autoridades dos departamentos executivos ou de qualquer outro órgão que o Congresso prever por lei, transmitirá ao presidente pro tempore do Senado e ao presidente da Câmara dos Representantes sua declaração escrita de que o presidente não pode exercer seus poderes e deveres de seu cargo, o vice-presidente assumirá imediatamente os poderes e deveres do cargo de presidente interino”, afirma o texto.
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“Todos os países têm seus extremistas. Eles estavam aqui bem antes de Trump e ficarão depois que se for. A diferença é que temos um presidente que os atrai. Mas não vejo isso como um símbolo de que a democracia nos EUA esteja morrendo. Ao contrário, a democracia triunfou.”
Erwin Chemerinsky, professor de direito e especialista em direito constitucional pela Universidade da Califórnia, Berkeley
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Censura sem prazo
Durante os últimos 1.449 dias, as redes sociais foram um dos principais palanques de Donald Trump para difundir suas ideais e, muitas vezes, propagar fake news. Em resposta à convocação do protesto de quarta-feira, o qual culminou na invasão ao Capitólio, o diretor-exeutivo do Facebook, Mark Zuckerberg, decidiu bloquear a conta do presidente republicano “indefinidamente”. Em sua página na rede social, o executivo explicou que o bloqueio, anunciado na quarta-feira com duração inicial de 24 horas, foi prolongado devido ao uso da plataforma por Trump para “incitar uma insurreição violenta contra um governo eleito democraticamente”.
“Nós achamos que os riscos de permitir que o presidente continue usando nosso serviço neste período são simplesmente grandes demais”, acrescentou Zuckerberg. “Portanto, prolongamos o bloqueio que fizemos em suas contas do Facebook e Instagram indefinidamente e durante pelo menos as próximas duas semanas, até que se complete a pacífica transição de poder.”
Trump, que antes havia falado à multidão e pedido que fossem ao Capitólio, publicou depois um vídeo nas redes sociais no qual repetiu suas acusações falsas de fraude eleitoral, dedicando até mesmo palavras afetivas aos manifestantes: “Nós os amamos”, disse o republicano. O YouTube removeu o vídeo, em acordo com sua política de proibir afirmações que desafiem os resultados das eleições. O Twitter afirmou, por sua vez, que as mensagens de Trump representavam violações das regras de integridade cívica da plataforma e que qualquer violação futura “resultará na suspensão permanente da conta @realDonaldTrump”.
FBI de olho em "todos os atores"
A última vez em que se havia tomado de assalto o Capitólio foi em 1814, quando os britânicos o incendiaram, durante a chamada Guerra de 1812. O FBI — a polícia federal dos Estados Unidos — trabalha com imagens e fotografias da invasão à sede do Legislativo, na tentativa de identificar participantes do ato que chocou o mundo, na quarta-feira passada. Michael Sherwin, procurador-geral em exercício, revelou que os agentes investigam todas as pessoas envolvidas no levante, incluindo o papel do presidente Donald Trump em incitar a multidão.
“Nós estamos olhando para todos os atores aqui e, qualquer um que tenha um papel, se a evidência corroborar os elementos do crime, será acusado”, disse Sherwin, ao responder a uma pergunta de um jornalista sobre se Trump seria investigado. As autoridades confirmaram pelo menos 15 casos criminais decorrentes dos protestos de quarta-feira estão prontos, incluindo um homem preso com um fuzil militar semiautomático e com 11 coquetéis molotov prontos para uso.
Na madrugada de ontem, especialistas do FBI em computadores monitoraram os dados das câmeras de segurança do complexo do Capitólio. Descobriram que, em alguns casos, pessoas envolvidas na invasão tinham publicado, nas redes sociais, os planos de ataque. Os procuradores federais creem que o conteúdo digital ajudará a apresentar as acusações.
Alguns nomes são conhecidos da mídia e da polícia. Natural do Arkansas, Richard Barnett, 60 anos, invadiu o gabinete da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. “É minha mesa”, disse ao canal KFSM 5News, na quarta-feira. “Sou um contribuinte. Sou um patriota. Não é a mesa dela. Nós a emprestamos.” Barnett administra um grupo pró-armas no Facebook.
Com o torso nu e usando um chapéu de peles com chifres, Jake Angeli atraiu como um imã os olhares de fotógrafos e de cinegrafistas dos quatro cantos do Capitólio. O homem de 30 anos se apresenta como “soldado digital do QAnon”, o movimento conspiratório que fez de Trump um herói. “Somos patriotas na linha de frente do Arizona e queremos trazer energia positiva a Washington”, escreveu ele uma publicação de dezembro na rede social favorita dos ultraconservadores, o Parler.
O militante neonazista Matthew Heimbach, 29 anos, é descrito pelo Southern Poverty Law Center, um observatório de grupos extremistas, como “o rosto de uma nova geração de nacionalistas brancos”. Ele foi fotografado ao lado de Angeli. Adam Johnson, de Parrish (Flórida), é o homem pego de surpresa pela câmera quando carregava o púlpito de Pelosi. A primeira vítima conhecida da violência foi Ahsli Babbitt. A californiana, “libertária”, segundo sua conta no Twitter, morreu após receber um tiro à queima-roupa disparado por um policial.