Estados unidos

Trump é o primeiro americano a ser julgado politicamente por duas vezes

Câmara dos Representantes aprova processo de impeachment do magnata por "incitamento à insurreição". Presidente é o primeiro a sofrer julgamento político duas vezes. Dez republicanos pela acusação formal do magnata, que pediu "união do povo americano"

Rodrigo Craveiro
postado em 14/01/2021 06:00
 (crédito: AFP / MANDEL NGAN)
(crédito: AFP / MANDEL NGAN)

Donald Trump entrou para a história, ontem, como o único presidente dos Estados Unidos a sofrer um processo de impeachment duas vezes. Às 16h22 (18h22 em Brasília), a Câmara dos Representantes alcançou os 218 votos (de um total de 433) — o mínimo necessário para a acusação formal. Ao fim da votação, 232 deputados votaram a favor do impeachment e 197 contra. Dez republicanos se alinharam aos 222 democratas e apoiaram o impeachment. Quatro deputados republicanos se abstiveram. Trump responderá no Senado por “incitamento à insurreição”, uma alusão ao seu papel na invasão do Capitólio por vândalos, em 6 de janeiro passado, que deixou cinco mortos.

Em 18 de dezembro de 2019, a Câmara tinha acusado Trump por dois crimes: abuso de poder (230 votos a favor, 197 contra e uma abstenção) e obstrução do Congresso (229 votos a 198 e uma abstenção). Menos de dois meses depois, o Senado o absolveu nos dois processos respectivos — 52 votos a 48 e 53 a 47. Às 18h07 de ontem (hora local), Nancy Pelosi, presidente da Câmara assinou o Artigo de Impeachment. “De forma bipartidária, a Câmara mostrou que ninguém está acima da lei, nem mesmo o presidente dos EUA. Donald Trump é um perigo claro para o nosso país”, declarou a democrata. Durante os debates que antecederam a votação, mais cedo, Pelosi disse que o republicano incitou “esta rebelião armada contra o nosso país”. “Ele deve partir.”

A surpresa ficou por conta de Kevin McCarthy. O líder da minoria republicana afirmou que o presidente “é o responsável pelo ataque” ao Capitólio. Sem mencionar a palavra “impeachment”, Trump pediu aos americanos que superem as paixões e se unam “como um só povo”. “Eu quero ser bem claro. Condeno, de forma inequívoca, a violência que vimos na semana passada. Ela não tem lugar em nosso movimento de tornar a América grande novamente”, disse, em vídeo divulgado pela Casa Branca no Twitter.

“A violência de vândalos vai contra tudo em que creio e contra tudo o que nosso movimento representa. (…) Nenhum verdadeiro apoiador meu jamais poderia endossar a violência política. Nenhum verdadeiro apoiador meu poderia desrespeitar a aplicação da lei ou nossa grande bandeira americana. Nenhum verdadeiro apoiador meu poderia ameaçar ou intimidar seus colegas americanos. Se você faz essas coisas, não apoia nosso movimento, ataca-o. E está atacando o nosso país. Não podemos tolerar isso.”
Líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell rejeitou os apelos do Partido Democrata por um julgamento acelerado. “Segundo as regras, procedimentos e precedentes do Senado que regem o processo de impeachment, simplesmente não há chance de que um julgamento justo ou sério possa terminar antes que o presidente eleito (Joe) Biden tome posse na próxima semana”, afirmou. A cerimônia de investidura do novo governo ocorrerá no dia 20. McConnell observou que os três julgamentos políticos anteriores — de Andrew Jackson, em 1868; Bill Clinton, em 1999; e o próprio Trump, entre 2019 e 2020 — duraram 83, 37 e 21 dias, respectivamente. Chuck Schumer, líder da minoria democrata no Senado, disse que McConnell poderia iniciar o julgamento “sumariamente” se quisesse.

“Não importa o que aconteça no Senado, Trump foi acusado pela Câmara por ‘incitamento à insurreição’. Isso fará parte da cada história e biografia futura de Donald Trump no futuro”, afirmou ao Correio Christopher McKnight Nichols, historiador da Universidade Estadual do Oregon e coautor de Rethinking American Grand Strategy (“Repensando a Grande Estratégia Americana”).

Segundo ele, apesar de parecer um número inexpressivo, o fato de 10 deputados republicanos terem votado a favor do impeachment representa um “notável repúdio” a Trump. “Vale lembrar que nenhum republicano rompeu fileiras com os votos em 2019, quando todos os governistas se opuseram ao impeachment. Apenas Justin Amash, republicano que se tornou independente, votou pela acusação.”
Nichols afirma que, na ocasião, quase nenhum republicano estava sequer disposto a classificar as ações de Trump como “impugnáveis” ou a castigá-lo por abuso de poder ou obstrução do Congresso. “Agora, muitos republicanos, mesmo alguns que não votaram pelo impeachment, pediram censura e algum tipo de consequência; até mesmo renúncia ou destituição.”

Ross Garber — advogado especialista em impeachment e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Tulane (em New Orleans, Louisiana) — admitiu ao Correio que as acusações contra Trump são bastante sérias. “Ele foi acusado de incitar intencionalmente uma violenta insurreição. É notável que 10 republicanos tenham apoiado o impeachment”, comentou. O estudioso vê como “incerto” o resultado do julgamento político no Senado. “O processo não começará antes de 20 de janeiro, e uma condenação exige dois terços dos votos”, lembrou.

James Green, historiador político da Brown University (em Rhode Island), afirmou que tudo dependerá se o novo Senado será capaz de dividir o tempo entre o julgamento e as sessões legislativas, com quórum completo. “Acho que deve haver continuidade no processo de impeachment até fevereiro. Ao mesmo tempo, Joe Biden precisa da aprovação do Congresso para tentar aprovar novas legislações e para confirmar o gabinete. Se McConnell realmente apoiar o impeachment, haverá a possibilidade real de se conseguir os dois terços exigidos para a condenação. Também vai depender se Trump tentará se perdoar na próxima semana”, acrescentou. Em Washington, correm rumores de que o magnata anunciará um indulto presidencial para si para e familiares, a fim de evitar condenação criminal.

» Um recurso extremo

Saiba mais sobre o impeachment nos Estados Unidos e suas repercussões

Etapas

A Constituição norte-americana prevê que o Congresso pode destituir o presidente — ou o vice ou os juízes federais — em caso de “traição, corrupção ou outros crimes e delitos importantes”. O procedimento se desenvolve em duas etapas. Primeiro, a Câmara de Representantes investiga e vota, por maioria simples (218 votos de 435), os artigos da acusação que detalham os atos condenados do presidente, um procedimento conhecido como “impeachment”, em inglês. Com a acusação formal do presidente, Senado inicia o julgamento político.

Destituição

Ao fim dos debates, os 100 senadores se pronunciam sobre cada artigo da acusação. Exige-se maioria de dois terços para condenar o presidente. Caso seja aprovada, a destituição é automática e irreversível. Se não se chegar aos votos necessários, o presidente é declarado inocente. Os senadores podem votar depois, com uma maioria simples, outras penas, como a proibição de se candidatar a um novo mandato.

Votação no Senado

Como a Constituição não fixa nenhum calendário, a Câmara poderia esperar antes de transmitir o expediente da acusação ao Senado, dando tempo para a Câmara alta confirmar a nova equipe do governo e validar as primeiras medidas de Joe Biden.

Os prováveis resultados

O Senado está dividido ao meio em 50 democratas e 50 republicanos. A maioria de dois terços parece difícil de alcançar, levando em conta que no caso ucraniano, apenas um senador republicano votou com os democratas. Mas alguns legisladores republicanos consideram Trump o maior responsável pela invasão do Capitólio e querem se desfazer da influência que ele exerce no partido. Segundo o jornal The New York Times, o líder republicano no Senado, o influente Mitch McConnell, veria inclusive com bons olhos o processo ser iniciado. Caso os legisladores republicanos se abstenham em grande número, uma condenação não seria totalmente impossível.

» Pontos de vista

Por Christopher McKnight Nichols

Condenação improvável

“Parece muito improvável que 17 senadores republicanos se alinhem ao democratas para cumprir com a barreira máxima de dois terços para votar pela destituição de Trump. No entanto, as declarações de Mitch McConnell (líder da maioria no Senado) deixam uma porta aberta para que uma enxurrada de republicanos vote pelo impeachment. No mínimo, elas sinalizam que haverá muito mais votos pela destituição do que em 2019. Muito provavelmente, esse processo se desdobrará no Senado depois que os democratas assumirem o controle, em 20 de janeiro, e será dividido com outras prioridades, como a confirmação de membros do governo de Joe Biden e a aprovação de medidas urgentes ligadas à pandemia da covid-19 e ao estímulo econômico.” Historiador da Universidade Estadual do Oregon e coautor de Rethinking American Grand Strategy (“Repensando a Grande Estratégia Americana”).

Por James Naylor Green

Racha entre republicanos

“Embora apenas 10 republicanos tenham se unido aos democratas na votação pelo impeachment, o fato de terem rompido com o partido é muitos significativo. Especialmente a decisão da deputada Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney e a terceira na linha de liderança do Partido Republicano. Isso representa o começo de um racha dentro do Partido Republicano entre aqueles que desejam expulsar as forças de Trump e retornar ao conservadorismo tradicional e aqueles que compraram a ideologia e a retórica da extrema-direita. O senador Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado, não está comprometido com Trump. Ele se focará em bloquear a agenda legislativa e em garantir que os republicanos retomem o Senado em dois anos.” Historiador político e professor da Brown University (em Rhode Island).

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