De tempos em tempos, a economia mundial se altera por conta de mudanças de tecnologia e regras do jogo comercial. Considerando que a segurança das firmas, assim como a dos Estados, é garantida pela aquisição e manutenção de uma posição de vantagem com relação a organizações concorrentes, as mudanças são, muitas vezes, forçadas por firmas e Estados interessados em assegurar para si uma posição de vantagem. Com a mudança de poder nos EUA, está sacramentada a coalizão no Atlântico Norte para colocar a tecnologia e as regras do comercio global a favor de uma nova agenda dos países ricos. A nova rota conta com a simpatia de China e Japão e um bom lugar para observar o novo jogo é a mudança da indústria automobilística.
A posição de especial impacto dessa indústria na matriz insumo-produto dos nove maiores PIBs do mundo (a nona posição sendo ocupada pelo Brasil) vai abrir uma temporada de reorganização global para possibilitar os investimentos necessários com vistas a capturar a maior parte dos ganhos advindos da distribuição da especialização tecnológica. Nesse grupo, o Brasil é marcado pelo descaso de ser o único que não tem uma montadora de marca nacional. Apesar de ter estruturado boa parte de sua economia na cadeia produtiva que gera multiplicadores de emprego e renda em torno da indústria automobilística. E, por mais poderosas que sejam, todas as montadoras obedecem a matrizes no exterior. O que fica claro em momentos de grandes reorganizações.
O anúncio de que a Ford vai parar a produção no Brasil era uma tragédia evitável, mas anunciada. Nessa primeira metade do século 21, a produção de automóveis, em geral, está passando por maior automação das fábricas, internet das coisas, veículos autônomos, abandono do petróleo como combustível, etc. A Mercedes também foi se reorganizar na Alemanha. O futuro do automóvel tradicional, como conhecemos, está com os dias contados no mundo.
A história do desenvolvimento mundial, entrelaçando indústria automobilística e países hospedeiros, explicou, até aqui, por que Brasil foi bem-sucedido sem ter estratégia e inteligência competitiva. Tendo um povo que gosta de carro, pilotos consagrados, inventado um combustível próprio, quase todas as montadoras do mundo, percebe-se, agora, que foi muito menos bem-sucedido do que se tivesse governos e bancos de desenvolvimento com melhores e mais inteligentes estratégias de ação. A tal armadilha de governos sem influência mundial se agrava nesses momentos em que a economia global muda e o país não sabe, nem com quem, nem como, (re)negociar sua inserção internacional. O Brasil não é sócio, apesar de ter os predicados para ser.
Quando chegou ao país, no início do século 20, a Ford fabricava automóveis no Sudeste para o mercado doméstico e extraia borracha no Norte, em redor da criada Fordlândia, para o mercado internacional de pneus que expandia com o crescimento da demanda por automóveis. Num início de século 20 com expansão industrial e urbanização organizadas em torno de automóveis movidos a petróleo e borracha, a jovem república cafeeira até que não estava tão periférica e desorientada.
Hoje, a república é infinitamente mais rica, diversificada e capaz — tendo até se tornado autossuficiente no petróleo que começa a declinar, e a Petrobras não se dá conta e se recusa a se tornar uma universidade de energia. Mas a república parece ter perdido a noção de que precisa balancear estrategicamente commodities com indústria e tecnologia verdadeiramente de ponta (aquela que agrega valor ao produto e paga salários altos ao maior número de trabalhadores), porque seu maior ativo é sua enorme e criativa população.
Quem quiser ver esse cenário em dois tempos, viaje de barco pelo Rio Tapajós, de Itaituba no Pará, onde barcaças recebem grãos — sobretudo, soja — que chegam ali de carretas e, futuramente, também de trem, até Santarém. O destino dos grãos é a exportação através do Oceano Atlântico. O uso das hidrovias e melhoria das demais infraestruturas de transporte é um dos aspectos fundamentais para garantir a competitividade daquilo produzido no Brasil e uma das melhores conquistas dos últimos anos. Mas temos que prestar atenção para que os grãos passem por ali, mas parte da riqueza fique, para gerar mais prosperidade sustentável valorizando a Amazônia. Afinal, como inquietante lembrança do que não deveria vir a ser, as barcaças que seguem de Itaituba passam pachorrentas justamente em frente à abandonada Fordlândia, símbolo das cruéis variações da inserção passiva dos países na economia internacional. Se a soja destruir a Amazônia, o mundo já avisou que vai plantar em outro lugar. (Continua dia 31)
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